Assembleia-Geral da ONU corre o risco de acentuar fragilidades que a organização atravessa

13 de Setembro 2020

Com os países concentrados na pandemia da covid-19 e nas respetivas situações domésticas, a próxima Assembleia-Geral da ONU, a primeira realizada virtualmente, corre o risco de acentuar a fragilidade que a organização multilateral atravessa, sustentaram analistas ouvidos pela Lusa.

A análise é de duas figuras que assumiram funções ao longo das últimas décadas junto da Organização das Nações Unidas (ONU), o consultor Victor Ângelo e o diplomata Francisco Seixas da Costa, a poucos dias do início dos trabalhos da 75.ª sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, a primeira na história da organização a ser realizada em formato virtual, em virtude da atual crise pandémica.

“Esta Assembleia-Geral (…) vai ser naturalmente marcada pelo próprio discurso a propósito da pandemia e pelos efeitos que isso tem, e pela leitura que cada país faz disso. De certo modo afeta, eu diria, a eficácia da própria mensagem e afeta também aquilo que é o papel das Nações Unidas”, afirmou, em declarações à Lusa o embaixador Seixas da Costa, que foi representante permanente de Portugal junto das Nações Unidas, em Nova Iorque, entre 2001 e 2002.

Para o diplomata português aposentado, a organização vive hoje um “momento complexo no plano de afirmação internacional”, situação que tem muito a ver “com as restrições que os Estados Unidos têm vindo a colocar” e “com um certo desregulamento na ordem internacional que os últimos anos têm trazido”.

“Uma Assembleia-Geral deste género naturalmente não contribui para um reforço do papel das Nações Unidas e para uma densificação da sua ação”, reforçou Francisco Seixas da Costa, que também foi vice-presidente da Assembleia-Geral (2001-2002).

Reconhecido como o mais antigo alto funcionário português da ONU, o consultor e colunista Victor Ângelo também sustentou, em declarações à Lusa, que esta Assembleia-Geral de contornos inéditos acontece “numa altura em que as Nações Unidas têm sido muito marginalizadas (…) e numa altura em que precisavam de uma visibilidade e de uma projeção completamente diferente”.

“Evidentemente vai ser um acontecimento com pouco perfil, um acontecimento relativamente modesto, em termos da imprensa internacional e da opinião pública internacional, e isso é evidentemente sempre um problema”, prosseguiu Victor Ângelo, que durante 32 anos trabalhou no sistema da ONU e foi equiparado a secretário-geral adjunto.

E reforçou: “Este ano é um problema ainda maior porque temos estado a assistir nos últimos anos a uma diminuição da capacidade de intervenção das próprias Nações Unidas (…). As Nações Unidas precisavam de levar uma injeção de dinamismo que a Assembleia-Geral (…) lhe daria e que uma Assembleia realizada virtualmente não permite, não dá”, reforçou.

Esta falta de visibilidade, mas também o foco quase total da cena internacional na luta contra a covid-19, terá repercussões, segundo o antigo funcionário da ONU, no poder de atuação do Secretariado-geral da organização e na resolução de outras questões fundamentais e globais.

“As Nações Unidas só podem fazer aquilo que os Estados-membros lhe permitem fazer” e, neste momento, estes “têm outro tipo de preocupações”, focadas nas “agendas domésticas” e na gestão nacional da crise pandémica, prosseguiu Victor Ângelo, regressado a Portugal a pouco mais de dois meses após 42 anos a viver no estrangeiro.

Para o colunista, era “absolutamente fundamental” que as questões globais e o tratamento multilateral dessas mesmas “voltassem novamente para o centro das atenções”.

“A verdade é que há questões fundamentais, como as questões do Desenvolvimento, como as questões da Democracia e dos Direitos Humanos, que são questões que precisam de ser tratadas e que, neste momento, estão completamente postas de lado porque a única conversa internacional que se tem é sobre a pandemia”, sublinhou Victor Ângelo, acrescentando que a atual situação pandémica está a traduzir-se na perda de “muitos anos de conquistas” em vários domínios que eram tratados multilateralmente.

“A pandemia fez o mundo atual recuar 20 ou 25 anos”, disse Victor Ângelo, sem esquecer ainda que um dos organismos mais importantes nesta fase pandémica, a Organização Mundial da Saúde (OMS), tem sido alvo de fortes ataques por vários Estados-membros e “isso evidentemente também diminui a credibilidade do próprio sistema das Nações Unidas”.

As questões para além da pandemia também são um aspeto observado por Seixas da Costa, numa referência, nomeadamente aos objetivos da Agenda 2030 (que definem as prioridades e aspirações do desenvolvimento sustentável global).

O diplomata, que também foi representante permanente junto da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em Paris, lembrou que estas matérias “são compromissos de natureza internacional”, aos quais os países estão ligados e que ficam “obviamente tocados” com a prioridade dada à crise pandémica, mas que não podem ser esquecidos porque “marcam muito da vida das pessoas para além da pandemia”.

Mencionando que hoje se vive “um mundo claramente de recuo para a dimensão nacional”, o analista tem a expectativa de que a intervenção de Portugal na Assembleia-Geral da ONU, um país que “tem fé” naquilo que são “as virtualidades do mundo multilateral e da abordagem internacional das coisas”, reafirme esse apoio “a soluções coletivas de interesse coletivo”.

“Julgo que o discurso que o primeiro-ministro [António Costa] vai fazer na Assembleia-Geral (…) vai sublinhar esses aspetos e mais do que isso vai também tentar, e estou seguro, como aliás outros o farão, procurar que a pandemia não faça esquecer aquilo que é um conjunto de grandes preocupações que existem à escala global noutros setores”, afirmou Seixas da Costa.

“Porque a pandemia também pode acabar por ser assim uma espécie de cortina de fumo que nos fará esquecer aquilo que são os grandes problemas que passam para além dela”, concluiu.

LUSA/HN

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