Por iniciativa do PCP, a Comissão de Saúde ouviu, esta quarta-feira, a Federação Nacional dos Médicos, a Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais, o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses e o Sindicato Nacional dos Técnicos Superiores de Saúde das Áreas de Diagnóstico e Terapêutica.
Joana Bordalo e Sá, presidente da FNAM, denunciou as “sucessivas políticas de desinvestimento no SNS, nas suas infraestruturas, nas várias unidades de saúde”: “há hospitais onde não há papel higiénico, há cadeiras onde os profissionais se sentam que estão rotas, chove dentro dos gabinetes”. “E não é preciso ir para o interior”, porque “isto acontece por exemplo na cidade do Porto”. “Em 2022, tivemos uma execução do orçamento de 56%; em 2023, de 45%; e nós, neste momento, estamos em julho e a execução foi de apenas 10,6%. Mas, acima de tudo, não há investimento naquilo que é mais importante”: “os custos fixos com os profissionais de saúde, e aqui nós estamos a falar de salários base, condições de trabalho e valorização das nossas carreiras”, defendeu a representantes dos médicos, que, em Portugal, são “dos mais mal pagos a nível europeu” e têm tido “condições de trabalho cada vez mais degradadas”. E, em Portugal, “faltam médicos em todo o lado”. Atualmente, indicou Joana Bordalo e Sá, há 21.455 especialistas no Serviço Nacional de Saúde, 4.423 (“são os dados mais recentes que temos”) nos cuidados de saúde primários, 17.032 nos hospitais, e temos 10.000 médicos internos (“um terço da nossa força de trabalho e que também não têm sido acautelados”).
“E o que tem sido apresentado pelos sucessivos governos, nomeadamente o anterior e este, é o recurso ao trabalho extraordinário, incentivos pontuais, suplementos, e isto é sempre em troca de mais e mais e mais trabalho, mas para isso, apesar de tudo, parece haver disponibilidade financeira”, afirmou Joana Bordalo e Sá. Em relação ao anterior governo e à dedicação plena, “sobretudo para os médicos hospitalares, isto representou uma perda de direitos e que coloca os doentes em risco, a sua segurança, de alguma forma, porque aumentou o trabalho extraordinário para 250 horas, acabou com o descanso compensatório depois de um médico fazer uma noite, prevê trabalho ao sábado, quando o trabalho ao sábado tem que ser pago de outra forma, e aumentou a jornada diária de trabalho para nove horas, o que é um retrocesso civilizacional de, pelo menos, cem anos”. Em relação ao salário, e ainda na anterior governação, os médicos tiveram um “aumento salarial que não foi satisfatório”. “E este novo governo o que nos apresentou até agora também foi o pagamento de trabalho extraordinário, ainda por cima de uma forma completamente diferente, em que o trabalho extraordinário passa a ser normal e depois é através de um pagamento de pacote de horas, que é indigno”, denunciou Joana Bordalo e Sá. Para termos mais médicos no SNS, a FNAM entende ser necessário existir uma “negociação que seja competente e que, acima de tudo, inclua matérias tão importantes como a grelha salarial, e que tem que ser este ano para estar inscrita no orçamento de 2025, e também o resto do pacote das condições de trabalho”. Este governo “escolheu não incluir uma única proposta que a Federação Nacional dos Médicos tinha e, portanto, esperemos que isto se reverta”, finalizou a médica.
A Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais confessou: “temos tido graves dificuldades em negociar alguma coisa que seja com os ministros anteriores e mesmo agora com a ministra atual, que até não nos recebeu ainda, para os trabalhadores da área da saúde”. Na legislatura anterior tiveram “algum avanço” com a criação da carreira dos técnicos auxiliares de saúde, “uma matéria que vinha a ser reivindicada há imenso tempo pela Federação e pelos seus sindicatos”, mas neste momento enfrentam “graves problemas” pelo “processo de transição que está a ocorrer, ou não está a ocorrer, na maioria dos hospitais” – “o próprio Ministério não nos dá resposta sobre o processo de transição e acabamos por ter um conjunto de trabalhadores que ainda não transitaram para a carreira”, revelou a dirigente, Elisabete Gonçalves. Por outro lado, “a valorização desta carreira foi diminuta”. São exigidas “na ordem das 3000 horas de formação e estes trabalhadores em termos salariais não têm praticamente nenhuma valorização”, explicou a representante.
“Temos depois outros aspetos gritantes, como é o caso dos trabalhadores da emergência pré-hospitalar, que são trabalhadores também com um conteúdo de formação muito específico, que também não estão a ser valorizados – não foi revista a carreira, é necessário rever a carreira –, e que são trabalhadores que têm neste momento grandes dificuldades para o desempenho das suas funções por falta de recursos humanos”, partilhou. Segundo a Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais, somando as várias carreiras profissionais, faltam 2.124 trabalhadores. Elisabete Gonçalves enumerou ainda outros problemas: “Nós não temos processos de procedimentos concursais de integração de trabalhadores para as carreiras de técnicos superiores de saúde; temos trabalhadores na área dos técnicos superiores de saúde que não têm concursos de promoção desde 2006, que continuam à espera de progredir na sua carreira; as valorizações salariais dos trabalhadores da administração pública, essencialmente dos trabalhadores da saúde, são reduzidíssimas”; excesso de horas extraordinárias; falta de investimento na área da saúde; não conseguirem aceder ao número de trabalhadores nos centros de saúde e, por último, os técnicos superiores de saúde, “ou seja, trabalhadores com especialidade”, “pelo facto de estarmos em Entidades Públicas Empresariais”, estarem a ser contratados como técnicos superiores, não como técnicos superiores de saúde, “e essa questão cria problemas no desenvolvimento da sua função.”
Guadalupe Simões, dirigente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, criticou a falta de avaliação para sustentar as decisões políticas. “E a verdade é que o Serviço Nacional de Saúde, ao longo de anos, tem sido um balão de ensaio de decisões políticas sem que alguma vez tenham sido essas transformações alvo de avaliação”, afirmou a enfermeira, dando vários exemplos, entre eles o alargamento do modelo das Unidades Locais de Saúde, “que também nunca foram avaliadas”. “E, de facto, o que se diz é que a ULS de Matosinhos é um bom exemplo, e esquecemo-nos que a ULS de Matosinhos está dentro de uma Área Metropolitana e tem a dimensão que tem. E, portanto, a decisão foi alargar este modelo pelo país todo sem ter em conta as especificidades que existem em todo o território. À data dissemos logo que (…) temíamos que, eventualmente, isto pudesse criar mais constrangimentos naquilo que deve ser a missão dos cuidados de saúde primários, que é a promoção da saúde e a prevenção da doença. Todos os dados que hoje vamos recolhendo indicam precisamente que é isto que está a acontecer, nomeadamente com mobilização de profissionais para a área hospitalar em função daquilo que são as suas necessidades, nomeadamente dos serviços de urgências. Ou seja, durante décadas, depois de todas estas transformações, nunca houve avaliação por parte dos parceiros, por parte do poder político, por parte dos profissionais e, principalmente, dos portugueses”, alertou Guadalupe Simões.
“O desinvestimento que tem havido nas infraestruturas, equipamentos e tecnologia tem vindo a ter as consequências que são conhecidas. Quando tanto se fala em telemedicina, inteligência artificial, etc., é inaceitável que o SNS continue a não ter uma única plataforma digital que ligue os cuidados hospitalares e os cuidados de saúde primários, que exista redundância de registos (…), que tenhamos centros de saúde que não têm acesso a internet, por exemplo, ou que tenham computadores que não dão resposta àquilo que são hoje as necessidades em termos dessas mesmas plataformas digitais. (…) Relativamente aos profissionais de saúde e, em concreto, relativamente aos enfermeiros, há anos que o SEP exige um plano de contratação de profissionais de saúde, também de enfermeiros, em função daquilo que são as necessidades crescentes de resposta às pessoas em cuidados de saúde, tendo em conta o envelhecimento da população, tendo em conta os indicadores que nós temos hoje de jovens, por exemplo, obesos que, naturalmente, terão sinais e sintomas de doença em idade de vida ativa, que não é desejável para o país”, acrescentou a dirigente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses.
Luís Dupont, presidente do Sindicato Nacional dos Técnicos Superiores de Saúde das Áreas de Diagnóstico e Terapêutica, sublinhou que o Serviço Nacional de Saúde “continua a ser o garante para a maior parte da população portuguesa, que não tem outra forma de ter acesso aos cuidados de saúde de uma forma gratuita e universal” – “mas aquilo que nós todos pretendemos é que o Serviço Nacional de Saúde não se continue a degradar da forma como se está a degradar”, referiu. O sindicato concorda que, em Portugal, fazemos transformações e depois não as avaliamos e, em Portugal, “temos os profissionais de saúde cada vez mais descontentes, temos os profissionais de saúde cada vez menos motivados, mais cansados” – “isto não é, de maneira nenhuma, bom para o Serviço Nacional de Saúde”. Por outro lado, o sindicato constata que “hoje não há uma complementaridade entre o Serviço Nacional de Saúde, os serviços privados e os serviços sociais”: “aquilo que nós vemos, na maior parte das situações, é, efetivamente, uma competição, nomeadamente uma competição através dos profissionais de saúde”. Luís Dupont recordou que “há muitos anos que contratualizamos com o setor privado”, “por exemplo a nível dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica”. A questão é se “vamos continuar todos os anos a aumentar essa contratualização, ou aquilo que se pretende, efetivamente, é rentabilizar ao máximo aquilo que está instalado no Serviço Nacional de Saúde. Mas isto também passa por profissionais.”
“Todos nós sabemos que há falta de profissionais de saúde no SNS, podemos pensar é se essa falta é só pelo número em concreto ou [também] por uma questão organizacional”, prosseguiu Luís Dupont. “Mas tínhamos que olhar para o SNS de uma forma se calhar diferente do que temos estado a olhar. Não há evidência, neste momento, como já foi dito, de que as ULS sejam a solução para isso. A questão que é evidente é que, em muitas circunstâncias, nomeadamente nas urgências hospitalares, nós temos falta de resposta, nomeadamente em determinadas especialidades (…). Hoje, as carreiras que existem para os profissionais de saúde, e estou a falar dos TSDT [técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica], não são minimamente atrativas, não se enquadram naquilo que é a organização que existe no Serviço Nacional de Saúde e, portanto, elas devem ser revistas e devem ser repensadas, assim como há muito devia haver um plano nacional de formação de profissionais de saúde”, “para não estarmos a formar para exportar profissionais de saúde”, concluiu.
HN/RA
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