Missão de Graças Freitas resistiu a críticas, ameaças e cancro

22 de Fevereiro 2025

Críticas à forma como geria a resposta à covid-19, ameaças e um cancro foram alguns dos desafios que Graça Freitas enfrentou na pandemia, mas nada a fez desistir da sua missão enquanto diretora-geral da Saúde.

Os dois primeiros casos de covid-19 eclodiram há cinco anos “como um vulcão” em Portugal, culminando semanas de anúncios de casos suspeitos e intensos preparativos dos hospitais para receber infetados, recordou à Lusa a então diretora-geral da Saúde.

Quando assumiu o cargo em outubro de 2017, Graça Freitas estava longe de pensar que iria enfrentar a batalha contra uma doença que mudou temporariamente o mundo, matou cerca de 29.000 pessoas em Portugal, impôs o isolamento social e transformou a forma de comunicar e até de comer.

Em entrevista à agência Lusa, a especialista em saúde pública relatou como foi viver a primeira fase da pandemia de covid-19, que descreveu como “muito intensa” e com várias etapas.

Disse lembrar-se “perfeitamente do último dia do ano de 2019” quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou para uma nova doença provocada por um vírus desconhecido em mercados onde se vendiam animais vivos na China.

Inicialmente, a reação não foi “nem de alerta nem de alarme”, uma vez que todos os anos surgem notícias sobre novos vírus, mas a experiência com a síndrome respiratória aguda grave (SARS) em 2003, fez com que os médicos se mantivessem vigilantes, embora confiantes de que o foco seria contido.

À medida que chegavam mais informações, as autoridades perceberam que “a situação podia complicar-se” e, no dia 21 de janeiro de 2020, a DGS criou uma “task force”, com especialistas que trabalharam em todas as epidemias desde 1997.

Tinham, contudo, diferentes correntes de pensamento, com alguns mais conservadores e outros mais flexíveis nas medidas a adotar.

As divergências criaram “uma espécie de rutura interna” e levaram a uma discussão de “tantas horas” que os especialistas encomendaram, pela primeira vez, refeições por estafetas.

“Mal sabíamos que se iria tornar uma coisa corriqueira nos dias de hoje e ia ser tão importante na pandemia”, comentou Graça Freitas, com um sorriso.

Antes de a OMS declarar a pandemia, em 11 de março, Portugal já tinha ativado o plano de contingência utilizado na pandemia de gripe A em 2009, que tinha como referência os hospitais São João, no Porto, Curry Cabral e Dona Estefânia, em Lisboa, que se prepararam para lidar com o aumento de casos.

A Linha de Apoio ao Médico, antes voltada para doenças como o Ébola e a SARS, foi reforçada com dezenas de médicos para responder ao aumento significativo de chamadas com casos suspeitos.

Até que, “no dia 2 de março foi como um vulcão; eclodiram, finalmente, os dois primeiros casos”, um com origem em Itália e outro em Espanha: “Sabíamos que os íamos ter, só não sabíamos quando”.

Os casos aumentavam diariamente e, em 26 de abril, o país entrou na fase de mitigação (vírus disseminado), e passou “a atender-se gente em todos os hospitais, em todos os serviços de saúde”.

Para Graça Freitas, o que se passou naquelas primeiras semanas “hoje até parece irreal”, como o encerramento da cidade de Whuan, o número de mortos em Itália, além de imagens marcantes, como a do Papa a celebrar “a missa sem ninguém a assistir”.

A comunicação também se tornou “um desafio imenso” à medida que a pandemia alastrava, com o dia 11 de março a ser determinante para a sua transformação.

“Percebemos que era preciso haver uma comunicação direta e diária (…) porque eram semanas de enorme incerteza” e “havia uma velocidade enorme de notícias, de imagens do mundo inteiro” e a passar nas redes sociais, salientou.

Uma das grandes mudanças trazidas pela pandemia foi o formato das conferências de imprensa ‘online’. Durante a primeira videoconferência, a 11 de março, Graça Freitas teve de improvisar a indumentária, recorrendo aos lenços de uma amiga para esconder a roupa informal, antes de entrar no ar, para estar “mais apresentável”.

Estas videoconferências passaram a ser diárias com a ministra da Saúde ou o secretário de Estado da Saúde e a diretora-geral da Saúde a transmitirem informações em tempo real.

“Foi uma pandemia ‘online’. As coisas aconteciam diretamente e ao vivo”, disse Graça Freitas, acrescentando: “Todos os dias tínhamos uma aprendizagem nova”.

O objetivo era ser “o mais transparente possível e claro”, não entusiasmando demasiado as pessoas, mas também não as angustiando demasiado.

A nova forma de comunicar envolvia a parte técnico-científica, liderada pela DGS, e a política, relacionada com a responsabilidade final pelas decisões e medidas adotadas.

Nem sempre a DGS e o Governo estiveram de acordo nas medidas tomadas, “mas cada um cumpriu a sua parte”.

Exemplificou com uma medida que a DGS defendeu de um fecho seletivo de escolas em Felgueiras, onde ocorreu o primeiro surto de covid-19, e “o Governo decidiu, por motivos de alarme social, fechar todas as escolas até à Páscoa”.

“E não foi uma medida errada”, disse, comentando: “Os políticos tinham de pensar no impacto na sociedade, na economia, e muitas vezes no pânico que podia gerar-se na segurança das pessoas e, portanto, houve aqui uma complementaridade”.

“Fiquei sempre muito confortável, mesmo quando as opiniões não convergiam, porque eram, de facto, papéis e visões diferentes”, explicou.

Cinco anos depois da deteção dos primeiros dois casos de covid-19 em Portugal, em 02 de março de 2020, Graça Freitas recordou, como foi viver aquele período de incertezas, ao mesmo tempo que enfrentava um cancro da mama, e como se protegeu das duras críticas de que foi alvo.

Graça Freitas contou que familiares, amigos, e a equipa da Direção-Geral da Saúde criaram “uma barreira de proteção” para que não lesse as críticas, que começaram logo em janeiro de 2020, quando afirmou não existir “grande probabilidade” de o vírus, que tinha sido detetado no final de 2019 numa cidade chinesa, chegar a Portugal.

“Tinha a noção de que não podia levar com aquele embate tão doloroso, provavelmente, seria muito difícil. E, portanto, tive mecanismos de proteção”, relatou.

Apesar de, por vezes, achar que as críticas eram “injustas”, afastava rapidamente esse pensamento, pois a prioridade era o combate à pandemia.

“Também tinha esse lado pragmático, não podia estar a chorar de uma injustiça”.

Embora legítimo, “aquele maldizer do dia-a-dia (…)causava algum desconforto”, havendo dias em que era mais difícil de suportar.

Percebeu, contudo, a gravidade da situação quando, após uma das conferências de imprensa diárias sobre a covid-19, foi informada de que passaria a ter escolta policial, tal como a ministra da Saúde, Marta Temido.

Nunca questionou a razão da medida nem a comentou com a ministra: “Saí absolutamente calada e, enfim, de certa forma arrasada com o peso da medida”, porque indicava que haveria “ameaças importantes” à sua segurança.

A ex-diretora-geral admitiu que sem essa proteção as coisas poderiam “não ter corrido bem”.

Em relação às críticas sobre a gestão da pandemia, afirmou que fez “o melhor que sabia e podia” com os dados e o conhecimento disponíveis na altura.

“Se alguma vez falhei ou não disse exatamente o que era verdade, naquele momento estava convicta de que o era”.

“Não foi perfeito. Isso tenho a certeza absoluta que não foi. Podia ter sido melhor, podia ter sido feito por outras pessoas com outro tipo de capacidades, mas foi o que foi e foi a minha realidade”, declarou Graça Freitas, que lida com emergências de saúde pública desde 1997.

O período de incerteza da pandemia, com o número de mortos e infetados a multiplicarem-se, exigia um esforço imenso das equipas que trabalhavam dia e noite para acompanhar a evolução científica do novo coronavírus SARS-CoV-2 e delinear as medidas necessárias.

Esta exigência tornou-se um desafio para conciliar o descanso e o sono: “Para mim, foi doloroso. Senti que a idade já contava alguma coisa para o pouco descanso que tinha”.

Simultaneamente, Graça Freitas lutava silenciosamente contra um cancro de mama, já numa fase “mais controlada”, mas com dores “bastante intensas” devido ao tratamento.

A queda do cabelo era também um desafio, numa altura em que aparecia diariamente na televisão e os cabeleireiros estavam encerrados.

Contudo, tinha uma certeza: “Não podia abandonar nenhuma das lutas. Não podia deixar a medicação. Isso era impensável, era a minha cura à vida (…) e também, de certa forma, não pararia a missão que tinha”, a não ser que lhe dissessem que já não era necessária.

Graça Freitas aposentou-se em agosto de 2023, ao fim de cinco anos à frente da DGS. Questionada se teria aceitado o cargo sabendo que iria enfrentar a pandemia, que causou cerca de 29.000 mortos em Portugal, disse não conseguir responder.

“Não pelo trabalho, porque o trabalho não me assusta, não pelo que eu acho que fiz bem, do ponto de vista técnico e científico, mas pela exposição, é uma pergunta que ainda hoje não sei responder”, afirmou.

Sobre o que mudaria na gestão da pandemia, afirmou que “mudaria tudo”, mas, principalmente, a forma de comunicar e reforçaria a equipa da DGS, que fez “verdadeiros milagres” com os recursos de que dispunha.

Também destacou a importância de reservar 15 minutos diários para refletir, o que não conseguiu fazer devido à intensidade e rapidez dos acontecimentos, sobretudo, nos picos da pandemia, com novas variantes e altas taxas de mortalidade, chegando a registar 300 mortes diárias.

Esta sucessão de acontecimentos fez com que Graça Freitas não tivesse “uma visão muito abrangente” do impacto do que estava a ocorrer “do lado lá do ecrã”.

Só com o passar do tempo, e com o abrandamento da pandemia, em que começou a ter “mais tempo e liberdade”, se apercebeu da importância da sua presença nas conferências de imprensa.

Recordou uma senhora que encontrou no IPO e que lhe agradeceu por ter sido “companhia” durante “87 almoços” em que esteve em confinamento imposto pela pandemia.

lusa/HN

continuação da entrevista

 

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