Proximidade dos vizinhos no confinamento pode explicar redução de violência doméstica

25 de Junho 2020

Um confinamento muito vigiado, com todos os vizinhos em casa, pode explicar que não se tenha assistido a uma escalada da violência doméstica no período de emergência, admite a APAV, que já nota um regresso à normalidade.

“Tranquilidade aparente” foi a expressão usada por João Lázaro para descrever o que se passava em relação à violência doméstica no período do estado de emergência provocado pela pandemia de covid-19 no que à violência doméstica e aos pedidos de apoio recebidos pela APAV diz respeito, quando há semanas foi recebido em Belém pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, para falar sobre a situação.

Em entrevista à Lusa, a propósito dos 30 anos da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), que hoje se assinalam, o presidente da instituição, João Lázaro, disse que mantém a análise feita naquela altura sobre aquela altura, baseando-se num decréscimo de atendimentos na área da violência doméstica, mas sem quantificar, já que os dados exatos estão ainda a ser recolhidos e trabalhados e a APAV apenas costuma divulgar estatísticas via relatório anual.

“A nossa perceção é que a violência doméstica não disparou, como muitos vaticinaram e aconteceu noutros países”, disse.

As estatísticas das autoridades policiais que foram sendo divulgadas durante a emergência vão nesse sentido, indicando uma tendência de decréscimo nas queixas.

“Estávamos à espera de ver a análise estatística do ponto de vista policial o que tinham sido os crimes de ofensas corporais mais graves, e até de homicídio, para ver aí, como aconteceu por exemplo com o pico da crise de 2008, alguma válvula de escape dessa violência tremenda acumulada. Isso não aconteceu. Os homicídios de natureza conjugal não aumentaram, antes pelo contrário. Nesta altura já estamos a ver um regresso à normalidade, quer em termos de pedidos de apoio, quer em termos de visibilidade do fenómeno, quer em termos de fatalidades e de homicídios conjugais”, disse João Lázaro.

Admitindo que qualquer hipótese de explicação não passa, para já, disso mesmo, uma hipótese – “Diria que a história deste mês e meio, dois meses, ainda está para ser claramente estudada” – aventura-se a explicar os números do confinamento com o próprio confinamento, que fechou em casa, vítima e agressores, mas também todos os seus vizinhos.

“Isso pode, porventura, ter desempenhado um papel de não ter escalado a violência doméstica, pelo menos nesse período. Agora, para o bem e para o mal, essa tendência normalizou-se”, disse.

Em 2019, só as vítimas de violência doméstica representaram 79% dos crimes acompanhados pela APAV, de acordo com os dados da associação.

São mais de 80 as tipologias de crime acompanhadas pela APAV, mas a imagem de associação que apoia vítimas de violência doméstica predomina, como o confirmam as estatísticas dos atendimentos. Uma preponderância que não é limitativa para o trabalho da APAV, mas sim reflexo de uma crescente preocupação da sociedade com o tema, garante João Lázaro, referindo que a APAV presta apoio nesta área desde a fundação.

Trinta anos de trabalho podem, no entanto, não ser suficientes, e até revertidos num instante. Para João Lázaro este é “um combate que não tem fim”, como demonstram comportamentos polarizados da sociedade, que ao mesmo tempo que revela maior preocupação em dar visibilidade ao tema e em ajudar as vítimas, quebrando ciclos de violência e a ideia de que entre um casal “ninguém mete a colher”, ainda aplaude agressores à porta dos tribunais.

“Pode não ser um caminho fácil de trilhar, mas existe um sistema que funciona, que está lá para servir quem é vítima de crime e que é possível uma vida sem violência. É uma mensagem que tem que ser renovada todos os dias, também para criar essa intolerância social a esse fenómeno de violência […] Os últimos anos têm-nos ensinado como sociedade que os avanços dos direitos não é nada de garantido, que é algo que os cidadãos e as organizações da sociedade civil têm que continuar. Essa luta faz-se todos os dias”, afirmou.

A velhos problemas juntam-se novos desafios, trazidos pelo caminho da digitalização, com uma atenção cada vez maior à cibercriminalidade, às violações de privacidade e proteção de dados, mas também trazidos pela evolução etária da sociedade. O envelhecimento trouxe mais violência contra idosos e em 2019, segundo os números da APAV, quatro idosos por dia foram vítimas de violência.

“É claramente uma das grandes preocupações da APAV enquanto grupo alvo específico de violência e de crime”, admitiu João Lázaro”.

Esta é uma área complexa de intervenção, referiu, não só pela dificuldade em chegar às vítimas, mas também pelo perfil dos agressores.

“Há aqui um elemento que é claramente inibidor de a vítima pedir ajuda, que é o reconhecimento de que o agressor é uma criação sua, é um filho, é um neto. Isso implica desde logo conseguir chegar-se a essa pessoa e conseguir fazer passar a mensagem de que não é uma vergonha ser-se vítima, se há responsabilidade é do agressor, não é da vítima. A vítima de crime uma das primeiras atitudes que tem é autoculpabilizar-se. Isso muitas vezes é mais verdade quando os agressores são carne da nossa carne”, disse.

O caminho, do ponto de vista do presidente da APAV, terá de ser o de uma intervenção no sentido da autonomização e independência e não a abordagem atual, que privilegia a institucionalização, recusando uma visão de “infantilização” dos idosos, que os exclui da tomada de decisões sobre a sua própria vida.

“Essa tem sido de alguma forma a abordagem, através dos maiores acompanhados, a questão é que falta pensar isto como sistema integrado em termos de respostas. Porque os direitos não se anunciam apenas, criam-se condições de políticas públicas para eles poderem realmente ser exercidos e poderem ser verdadeiros numa base diária, sob [pena de] descrédito do próprio sistema”, disse.

João Lázaro não descarta responsabilidades do Estado em crimes como o de abandono, sublinhando que a primeira responsabilidade em termos de contrato social é entre o cidadão e o Estado.

“Cabe também ao Estado criar as condições para que quem cuida possa cuidar, possa ter condições para ser cuidador. Passa por várias medidas, sociais e fiscais. O Estado muita vezes se demite, em vez de promover políticas de autonomização, promove políticas de institucionalização”, afirmou, referindo que algumas dessas opções tiveram consequências, por exemplo, ao nível do impacto da covid-19.

LUSA/HN

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