“Essa coisa dos novos normais assusta-me sempre muito”, afirma José António Vieira da Silva, ex-ministro do Trabalho e conselheiro da Comissão Europeia para os direitos sociais durante a presidência portuguesa da União Europeia (UE), no primeiro semestre de 2021, em entrevista à Lusa.
“Acho que devemos ir com calma, perceber que estamos a viver uma situação excecional, não legislar como se a exceção fosse a regra, tratar a exceção como exceção e ir acompanhando”, completa.
Manifestando “reservas” quanto “a alguma euforia” sobre o teletrabalho, Vieira da Silva afirma que “há outro teletrabalho, que já tinha legislação, e que poderá ser melhorada”, mas frisa ver com “alguma preocupação” a ideia de que todos vão “ser independentes” e “trabalhar cada um por si”.
O teletrabalho “vai crescer, mas não acredito na capacidade de criação de conhecimento, de riqueza e de qualidade coletiva da vida [com] cada um fechado no seu escritório […] ou usando umas horas na sala de estar”, declara, sublinhando que “nem todos podem fazer isso”, porque “alguns têm mesmo que estar nas linhas de montagem”.
“Não é assim que a humanidade tem evoluído”, sustenta, apontando que, na crise económica e financeira de 2008-2012, “já se falava que iria aparecer agora uma nova geração de trabalhadores independentes, que o trabalho por conta de outrem ia perder importância”, mas “a recuperação não foi feita assim”, mas “principalmente à custa de empresas que contrataram”.
“Ou seja, a relação de trabalho, onde há um empregador e um empregado, onde há um salário, obrigações, regras, foi a melhor forma que até agora a sociedade humana conseguiu descobrir para organizar a criação de riqueza, a inovação e a distribuição”, nota.
Admite que “há algumas atividades económicas, algumas profissões, que poderão beneficiar” deste crescimento do teletrabalho, e assegura ter em conta que “há vantagens”, mas insiste que há um “risco para a sociedade”.
“A separação da vida familiar e da vida profissional […] não é uma coisa que sempre existiu. O facto de as pessoas trabalharem em casa, conjuntamente com a família, com os filhos, os avós, os pais, era a prática comum em Portugal até não há muitas décadas para uma grande parte da população”, explica.
“Esta separação da intimidade da vida familiar, que causou o profissionalismo autónomo, é uma realidade do século XX em Portugal”, “uma realidade positiva”, que “tem custos e tem excessos”, como o tempo excessivo passado nos transportes para ir de casa para o emprego, mas tem grandes benefícios, desde logo “um ganho civilizacional”.
“Há outras soluções que não passam por obrigar as pessoas a meter dentro do seu universo familiar, ainda por cima com a complexidade que têm hoje as famílias modernas, também a sua responsabilidade profissional. Julgo que isso é muito perigoso”, frisa.
Nessa perspetiva, defende, deve-se “tratar a exceção como exceção e ir acompanhando”, porque a Europa, e o mundo, vivem “uma situação única”, que forçou “a decisão de paralisar partes da economia para defender a saúde pública”, algo que nem nas guerras ocorre.
“Esta é uma crise em que em que há uma asfixia da criação de riqueza e uma asfixia para preservar a vida das pessoas e para preservar os sistemas, nomeadamente o sistema de saúde. Isso tem limites e tem consequências potenciais ao nível do emprego e do desemprego que ainda não conseguimos avaliar plenamente”, afirma.
As próprias estatísticas foram afetadas, sustenta, porque “os sistemas de produção de estatística foram afetados pelo covid-19”, quer porque “os entrevistadores não podiam estar na rua” ou porque “as amostras construídas com base telefónica sofriam com a mudança de localização das pessoas”, retirando aos decisores “esse poderoso elemento para prever o futuro”.
“Eu sei o que aconteceu entre 2018 e 2019, posso fazer uma projeção para 2020, mas de que é que isso me serve? Nada, porque em 2020 toda essa série foi quebrada brutalmente”, aponta.
Foi esta “situação de gravidade muito elevada”, argumenta, “que explica que a UE tenha tido o acordo que teve”, aprovando não só um pacote extraordinário de resposta à crise – o Fundo de Recuperação e Resiliência, no valor de 750 mil milhões de euros –, como, “ao fim de décadas de debate”, como assumindo “financiar-se no mercado como União Europeia”, colocando “ao dispor dos países mais frágeis […] verbas financiadas com condições de mercado […] que ninguém mais tem”.
“Foram tomadas muitas medidas, de suporte à situação, suporte conjuntural, mas o efeito estrutural ainda está em muitos casos para se abater sobre a economia mundial e sobre a União Europeia”, admite.
LUSA/HN
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