Filomena Frazão de Aguiar: “Ainda continua a ser problemático a pessoa receber a notícia de que está infetada”

12/29/2020
Muitos doentes nunca imaginaram que seriam portadores de VIH. Muitos escondem a medicação e tiram os rótulos pelo medo de serem discriminados.

Muitos doentes nunca imaginaram que seriam portadores de VIH. Muitos escondem a medicação e tiram os rótulos pelo medo de serem discriminados. O testemunho é da Presidente do Conselho de Administração e da Direção Executiva da Fundação Portuguesa a Comunidade Contra a Sida, Filomena Frazão de Aguiar, que revela à HealthNews que “há cada vez mais jovens e idosos infetados”. Marginalizados pela família “muitos idosos escondem a doença porque os filhos não os deixam conviver com os netos”.

Healthnews (HN) – A VIH deixou de ser uma sentença de morte. O que melhorou nos últimos 30 anos?

Filomena Frazão de Aguiar (FFA) – Colaboro nesta área desde 1996 e lembro-me perfeitamente dos meus primeiros utentes terem de tomar entre vinte e quarenta comprimidos por dia. Era algo muito complicado. Na altura, alguma desta medicação tinha que estar no frio e os doentes tinham condições muito complicadas… A maior parte vivia em quartos alugados e não tinha frigorifico. Estas pessoas também se expunham muito e algumas eram muito discriminadas – embora algumas ainda continuem a sentir essa mesma discriminação.

Neste momento tenho utentes que tomam diariamente apenas um ou dois comprimidos, no máximo. O facto da pessoa ter uma só toma diária representa uma melhoria significativa na qualidade de vida do doente.

Por outro lado, o número de internamentos e de efeitos secundários também diminuíram muito.

HN – Existe aspetos que permanecem no tempo?

FFA – A parte do estigma e da discriminação. Por mais que queiramos dar a volta, continua a persistir… devia ser algo que já nem devia ser necessário combater. O facto de pessoas com VIH serem discriminadas ou estigmatizadas é impensável.

A nível social, a nossa fundação continua a sentir alguma dificuldade em colocar idosos infetados em lares. Não são todos, mas alguns ainda rejeitam. Não dizem diretamente, apenas dizem que não têm vaga.

HN – Como pode ser combatido o estigma?

FFA – Com muita informação e com mudança de comportamentos. Temos de encarar esta infeção como uma doença crónica como outra qualquer. Os doentes não são infetados porque querem. Na verdade, temos muitos casos em que as pessoas nas suas rotinas fazem o teste e algumas nunca imaginaram que pudessem estar infetadas e, portanto, qualquer um de nós está sujeito. Não podemos pensar que tem só a ver com os nossos comportamentos, mas também passamos com a base da confiança. Se não fizermos o teste nunca vamos saber se o nosso parceiro está infetado.

HN – O estigma não poderá começar nos próprios doentes, tendo em conta que em muitas situações escondem a doença?

FFA – E escondem porquê? Escondem porque já sentiram que são discriminados e têm medo. Na nossa fundação temos cada vez mais jovens e mais idosos. Se formos para a faixa etária mais avançada é muito complicado. Dizermos a uma pessoa, para a qual o VIH nunca tinha tido qualquer tipo de significado, que está infetada é muito difícil. Muitos idosos escondem a doença porque os filhos não os deixam conviver com os netos e acabam por ficar completamente isolados. O isolarem-se da maneira como se isolam acaba por afetar a saúde mental destas pessoas. Estas vivem numa profunda solidão dentro da sua própria casa.

Muitos idosos escondem a medicação, pedem para tirarmos os rótulos… temos muitos episódios destes. Mas há mais: cada vez que têm um problema, que não está relacionado com VIH, e têm de dar entrada no hospital é uma odisseia porque nenhum dos familiares sabe que a pessoa está infetada.

HN – Enquanto especialista em aconselhamento de VIH e SIDA qual o papel dos psicólogos nesta área?

FFA – O papel do psicólogo é muito importante. A parte do apoio psicológico a estas pessoas que, de repente, são confrontadas com a doença é muito importante. A maioria dos que têm este apoio começa a aceitar o facto de ser portador da doença.

Na nossa fundação, quando se faz o teste, temos sempre um psicólogo a acompanhar. Fazemos sempre o aconselhamento pré e pós teste. Nunca sabemos como é que essa pessoa vai reagir à notícia. Não é a mesma forma de dizer que a pessoa tem outro tipo de doença. Ainda continua a ser problemático a pessoa receber a notícia que está infetada.

Quando o doente tem muita dificuldade em se deslocar às nossas instalações para ter acesso ao apoio psicológico fazemos o apoio ao domicílio. Isto tem sido extremamente importante. A avaliação que é feita deste serviço é de excelência porque são pessoas que dificilmente falam sobre esta temática. São pessoas que dificilmente assumem a sua própria doença e o facto de termos este apoio ao domicílio tem sido muito bom.

HN – Há pouco dizia que qualquer pessoa está sujeita a contrair a doença. Significa que o perfil dos doentes mudou?

FFA – Inicialmente a VIH ligava-se muito à comunidade homossexual. Hoje já não. A comunidade homossexual soube muito bem controlar a infeção e, por isso, hoje em dia, o nosso maior número de infetados é mesmo nos heterossexuais. Há cada vez mais jovens e idosos infetados.

HN – Falando sobre os jovens, em fevereiro a fundação organizou uma palestra sobre a doença dirigida a jovens do ensino secundário de Gondomar. Passaram 30 anos e abunda informação. Ainda é necessário insistir na tecla da prevenção?

FFA – Ainda existem muitas dúvidas. Continuamos a ir ter que falar. Ao longo destes anos todos assistimos a uma evolução muito grande dos tratamentos, mas há uma área que é muito esquecida e que é a área da prevenção. Antes de falar de tratamento temos que tratar a prevenção. Sem prevenção vamos ter sempre tratamentos.

Temos um projeto, implementado com o apoio do Ministério da Educação onde conseguimos falar, utilizando uma metodologia de educação pelos pares, destas temáticas com os mais pequenos. Formamos jovens universitários que depois ficam com uma turma do ensino secundário e acompanham a mesma turma durante o 7º, 8º e 9º ano.

No entanto, continuamos a ver que mesmo os jovens universitários de medicina, psicologia e enfermagem (que eventualmente são os mais bem preparados para serem os formadores destes jovens mais novos) continuam a ter muitas dúvidas relativamente à infeção por VIH. Vemos isso em todas as formações que fazemos com voluntários.

HN – Como é que os jovens encaram hoje a infeção por VIH?

FFA – Hoje em dia já encaram de uma forma diferente, até porque está provado que as pessoas que sejam portadoras da infeção e que estejam sob tratamento antirretroviral não transmitem o vírus. Portanto, começam a olhar para a doença de uma forma mais ligeira. Sabem que não tem cura, mas que é uma doença que pode ser tratada.

HN – O que deve ser feito para melhorar a qualidade de vida dos doentes?

FFA – O acesso ao teste e caso seja positivo, o acesso rápido a uma primeira consulta. Os doentes devem ter acesso ao melhor tratamento que houver disponível. Não devemos ver os tratamentos pelos preços, mas sim pela sua qualidade e eficácia no doente. É preciso criar mecanismos, que já começamos a ver e muito bem, para as pessoas poderem levantar a medicação na farmácia da sua área de residência.

A vertente da saúde mental deve ser mais incentivada. O apoio psicológico, que é uma intervenção bastante cara é prestada gratuitamente pelas organizações não-governamentais, que não são suficientemente apoiadas para prestarem este tipo de serviços de forma gratuita.

HN – Em termos de prevenção consegue identificar paralelismos entre esta infeção e a Covid-19?

FFA – Há uma coisa que é muito parecida que é a parte da discriminação. A maior parte dos doentes esconde o facto de estar infetado.

A nível dos testes rápidos acho que é muito bom. Com a experiência que temos na área do VIH e das hepatites, estes testes veio-nos dar um avanço muito grande. Às vezes ouvimos a polémica dos testes rápidos e da sua eficácia, mas no caso do VIH temos testes com resultado em um minuto e ainda não tivemos até hoje, na fundação, nenhum caso de falso positivo ou falso negativo. Portanto, confio bastante nos testes rápidos, mas de qualidade. Na área do VIH quando surgiram os testes aderimos logo muito bem.

A nível dos apoios, muitos doentes estão a ser esquecidos e isso as organizações não-governamentais não deveremos deixar que aconteça. Temos que lutar pelo bem-estar dos nossos doentes. O facto de existir a pandemia e a sobrecarga nos serviços de saúde não pode pôr em causa outras doenças.

Entrevista por Vaishaly Camões

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