Filipe Froes: “O cenário de uma quarta vaga em Portugal é possível e temos de estar preparados”

03/25/2021
O desconfinamento não pode ser visto como uma retoma à normalidade, alerta o pneumologista e coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos, Filipe Froes. “Não há decisões sem risco” nem “nenhum desconfinamento perfeito”. O atraso das vacinas e o incumprimento das regras sanitárias podem facilmente provocar uma quarta vaga. Em entrevista à HealthNews Filipe Froes considera que o “ruído paralisante” criado em torno da vacina da AstraZeneca “pode agravar o síndrome de hesitação vacinal e prejudicar a retoma social e económica”.

O desconfinamento arrancou esta segunda-feira com a reabertura de creches, escolas e ATL. No entanto, um estudo do Imperial College de Londres concluiu que a faixa etária entre os 5 e 12 anos era a mais afetada pela variante detetada no Reino Unido. Faz sentido começar o desconfinamento pelos estabelecimentos de ensino?

Do meu ponto de vista faz. Embora a variante britânica apresente maior taxa de incidência nos grupos pediátricos mantém-se menor do que nos adultos. Portanto, na minha perspetiva faz sentido começar por pessoas que, à partida, têm menor taxa de incidência, menor taxa de doença e menor taxa de transmissão.

Não teria sido prudente o primeiro ciclo começar o ensino presencial mais tarde?

Não há decisões sem risco. O mais importante não é tomar essa decisão, o mais importante é manter a capacidade de detetar precocemente aumentos de incidência que possam obrigar a tomar medidas corretivas.

Estudos no Reino Unido demonstram que a abertura das escolas está associada a um aumento da transmissão que se traduz, em média do Rt, em 0,25. Portanto, tão ou mais importante do que abrir é manter a capacidade de monitorizar o impacto da abertura.

Assistimos a atrasos e escassez de vacinas. Estamos a desconfinar em segurança?

Vejo o desconfinamento como uma dupla responsabilidade para as pessoas (que têm que manter as medidas de adesão que minimizam o risco de transmissão) e das entidades de oficiais no sentido de ter capacidade de monitorizar, em tempo real, o desconfinamento. O desconfinamento não significa que as pessoas podem voltar a fazer tudo o que faziam antigamente. É preciso que as pessoas continuem a utilizar máscaras, etiquetas respiratórias, a higienização das mãos e o distanciamento social.

Não há nenhum desconfinamento perfeito. Desta vez temos um plano. Sabemos o que nos pode acontecer de acordo com a evolução epidemiológica da pandemia em Portugal.

O plano de desconfinamento “a conta-gotas” definido pelo primeiro-ministro afasta o cenário de uma quarta vaga?

Não afasta. O que afasta um cenário de uma quarta vaga são aquelas duas vertentes que tenho referido até agora: a adesão das pessoas às medidas de prevenção e controlo e a existência de leis que permitam monitorizar em tempo real o impacto da reabertura.

Estamos a assistir que alguns países a nível europeu já estão a enfrentar uma quarta vaga. Portanto, não podemos dizer que este cenário é uma surpresa. O cenário de uma quarta vaga em Portugal é possível e temos de estar preparados para a essa possibilidade. Depende de nós, quer das pessoas e do Governo, a sua ocorrência.

As linhas vermelhas traçadas pelo chefe do Executivo foram claras. Para o país assistir a um alívio das restrições o Rt tem de permanecer abaixo de 1 e não pode haver mais de 120 casos por dia  por 100 mil habitantes a 14 dias. Estas métricas são suficientes para avaliar a situação epidemiológica?

Não. Estas métricas devem ser complementadas por uma monitorização diária não só desses indicadores, mas também de um outro conjunto de métricas que também estão incluídos, nomeadamente: a taxa de positividade, o número de internamentos, o número de doentes em cuidados intensivos, a taxa de letalidade, o atraso dos inquéritos epidemiológicos. Essas métricas são o “rosto” mais visível de um conjunto de indicadores que devem ser monitorizados permanentemente e diariamente. A métrica apresentada pelo primeiro-ministro é a 14 dias… Nós não podemos esperar 14 dias para tomar decisões. Temos que todos os dias trazer o nosso “trabalho de casa”.

Os portugueses podem agora adquirir testes rápidos de antigénio nas farmácias sem ser necessária receita médica. A medida não poderá contribuir para uma falsa sensação de segurança e de maior liberdade?

Todas as medidas têm dois lados, depende é da utilização que as pessoas derem a essa informação. Sou a favor da disponibilização de testes rápidos e da maior capacitação e envolvimento das pessoas. Na generalidade estou convencido que as pessoas vão perceber o alcance dos testes rápidos e vão utilizá-los de maneira a defenderem-se a elas próprias e defenderem os outros. Temos que ter a noção que quando é feito um teste rápido não significa que a validade desse teste seja permanente. Estes testes só avaliam aquele momento relativamente ao risco de transmissão. O pior que pode acontecer é passarmos continuamente um atestado de menoridade as pessoas, vedando-lhes o acesso a ferramentas indispensáveis para a normalização social e económica.

Nos últimos dias vários países, incluindo Portugal, suspenderam a utilização da vacina da AstraZeneca após possíveis efeitos secundários graves. Devemos ficar preocupados?

Do ponto de vista científico os dados disponibilizados não permitem estabelecer uma relação de causalidade entre os eventos tromboembólicos e administração da vacina. Estes eventos têm uma incidência superior na população normal em relação aos dados reportados, o que não significa que não devam ser estudados e analisamos. Deve ser mantida a serenidade, deixando as entidades competentes fazerem o seu trabalho sem interferências políticas.

Quando avaliamos a suspensão de um medicamento, nomeadamente uma vacina contra a Covid-19, na análise de risco, temos que necessariamente também incluir o risco da não-vacinação e as consequências do ruído que se gera. O preço da não-vacinação é muito superior e as consequências do ruído paralisante que se estabeleceu podem prejudicar em muito um bem maior que é a necessidade de vacinar a população mundial.

Quer dizer que este “ruído” pode aumentar o medo de as pessoas não quererem ser vacinadas?

Isto significa que o ruído paralisante que está a ser provocado à volta da vacina da AstraZeneca pode agravar, com consequências irreversíveis, o síndrome de hesitação vacinal e prejudicar a retoma social e económica de Portugal e dos restantes países. Isso é mau para todos, sobretudo, porque foi tomado com base em dados que não permitiam fundamentar essa decisão. Portanto, temos que manter muita prudência e muita serenidade.

O que vai acontecer com as pessoas que já fizeram a primeira dose?

Provavelmente quando chegar a altura de receberem a segunda toma já esta situação estará resolvida. Tudo estará clarificado quando receberem a segunda toma. Se tivermos em consideração que o intervalo de tempo entre a primeira e a segunda toma da vacina da AstraZeneca são 12 semanas… Não temos vacinas há 12 semanas, temos vacinas da AstraZeneca provavelmente há quatro semanas. Portanto, ainda temos muito tempo para clarificar e, acima de tudo, tranquilizar as pessoas.

Estamos a dois ou três dias de conhecer o veredicto da Agência Europeia do Medicamento.

Entrevista de Vaishaly Camões

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