“Existe muito pouca contribuição dos africanos no campo da arquitetura no Brasil e temos de ter a coragem de dizer porquê. A arquitetura na idade média, a arquitetura no período colonial era a arquitetura do poder, da elite. A arquitetura do monumento, da casa, da rua, era arquitetura colonial e os escravizados não eram sequer nativos para terem uma arquitetura originária”, afirmou Zulu Araújo, arquiteto negro brasileiro, e presidente da Fundação Pedro Calmon.
“A presença negra na arquitetura colonial é por meio da mão-de-obra”, acrescentou o especialista natural de Salvador, que já trabalhou em projetos ligados a conservação do património histórico do Pelourinho, assim como comandou instituições culturais de valorização da cultura negra como a Fundação Cultural Palmares.
“Apenas em alguns momentos é possível reconhecer e encontrar a interferência dos negros na arquitetura das igrejas do centro histórico da cidade Salvador. Quando você vai fazer um restauro e descasca aquelas camadas, pode encontrar desenhos islâmicos, mensagens inspiradas na localidade de onde eles eram originários, mas para ser sincero não há, de uma forma significativa, uma contribuição dos africanos ou dos negros na arquitetura desenvolvida no país porque as condições de habitação e presença deles no Brasil não permitiam”, ponderou.
O arquiteto, que falará sobre diáspora e migrações com foco em sua experiência no campo cultural num debate virtual que também contará com a participação do arquiteto indiano Rahul Mehrotra, explicou que há duas dimensões de património cultural, o material e o intangível ou imaterial.
“Dificilmente você vai encontrar qualquer representação de património material da cultura negra. Porquê? Qual é o património material que há no Brasil? As Igrejas, por exemplo. Escravizados tinham igrejas? Claro que não. Escravizados tinham casas? Claro que não. Escravizados, até ao início do século 20, não tinham nem sapatos”, disparou.
O arquiteto lembrou, porém, que quando se analisa o património imaterial, intangível, os negros são hegemónicos no Brasil, ou seja, são responsáveis pela formulação de grande parte dos elementos que marcam a identidade brasileira.
“A capoeira é de origem negra. Património cultural brasileiro e da humanidade. O samba do recôncavo da Bahia, património cultural brasileiro e da humanidade (…) Foi onde a gente estabeleceu ou pode estabelecer a nossa riqueza, a nossa contribuição e o nosso legado”, enumerou.
Questionados sobre os terreiros das religiões de matriz africana, que têm uma organização diferente da arquitetura colonial portuguesa, Araújo avaliou que estes espaços foram criados no Brasil e têm mais relação com a arquitetura indígena do que com as arquiteturas produzidas pelos povos da África há milhares de anos, com as pirâmides do Egito e a Mesquita de Cairuão, na Tunísia, e outras construções diversas desenvolvidas e usadas pelos habitantes dos 54 países africanos.
“Como houve um apagamento de nossa histórica, imaginou-se que a conformação dos terreiros de candomblé no Brasil são contribuições arquitetónicas de origem africana, mas não são. Eles estão muito mais próximos, em termos de distribuição arquitetónica, das aldeias indígenas do que de algo que possa ter uma contribuição ou origem africana”, avaliou Araújo.
“Às vezes a gente ocupa a ausência histórica que tivemos em algumas áreas com lendas”, acrescentou.
Embora não encontre marcas da influência africana na arquitetura brasileira histórica, Araújo lembrou que no último século, brasileiros descendentes de africanos deram contribuições muito relevantes a arquitetura do país e citou como exemplo os sambódromos.
“Tem algum lugar no mundo com sambódromo? Qual é a origem, o que gera o sambódromo? A necessidade do samba que permita de uma maneira organizada, num só tempo e espaço, a interação entre o espetador e uma massa enorme de pessoas, três, cinco mil pessoas que desfilam nas escolas de samba. A arquitetura que esta manifestação cultura gerou é inequivocamente influenciada por uma manifestação cultural de origem africana, que é o samba”, concluiu.
O debate “Migrações e Diásporas” realiza-se na segunda-feira, dia de abertura da quarta semana aberta do Congresso Mundial dos Arquitetos, e conta com os arquitetos Rahul Mehrotra, da Índia, e Zulu Araújo, do Brasil.
Esta semana da 27.ª edição do congresso, organizado no Rio de Janeiro, decorre sob o eixo temático “transitoriedades e fluxos” e aborda o impacto dos fluxos migratórios nas cidades.
Marcado inicialmente para julho de 2020, o 27.º Congresso Mundial de Arquitetos é organizado pela primeira vez no Rio de Janeiro, e teve de ser adiado para o presente ano, devido à pandemia de covid-19, decorrendo de forma totalmente virtual entre março e julho.
LUSA/HN
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