“Temos de olhar para a literacia em saúde de uma forma sistémica”

5 de Agosto 2021

Dra. Ana Rita Goes Professora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), da Universidade Nova de Lisboa

“Temos de olhar para a literacia em saúde de uma forma sistémica”

A literacia em saúde “precisa de ser olhada numa perspetiva de necessidades e também de forças e recursos, ou seja, de uma forma sistémica. Nunca é só um problema da pessoa; tem a ver com todo o ambiente que a rodeia”, afirma a investigadora Ana Rita Goes, professora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), da Universidade Nova de Lisboa.

HealthNews (HN) – O aumento da literacia em saúde deve ser encarado como uma prioridade política?

Ana Rita Goes (ARG) – Melhorar o nível de literacia em saúde dos portugueses é uma prioridade. Sistematicamente, os resultados dos estudos que realizamos mostram-nos que isso é essencial para os indivíduos serem capazes de gerir melhor a sua saúde. Mas não podemos olhar só para as pessoas. Temos de olhar para o sistema e fazer com que este seja capaz de responder às suas necessidades.

Não tenhamos ilusões: nunca teremos, de uma forma homogénea, uma população com níveis elevados de literacia em saúde. Teremos, sim, uma população heterogénea, constituída em simultâneo por grupos mais vulneráveis e por grupos mais autónomos e mais capazes de auto-gerir a sua saúde. O sistema tem de se ajustar àqueles que são mais autónomos e apoiar, de forma mais sustentada, aqueles que mostram maior vulnerabilidade.

HN – E como responde o sistema àquilo que alguns especialistas já chamam de “paradoxo da literacia em saúde”?

ARG – O sistema quer pessoas com níveis muito elevados de literacia em saúde mas depois não reage bem quando as pessoas querem participar mais na gestão da sua saúde, solicitam mais informação, querem estar envolvidas no processo de decisão ou rejeitam determinado tipo de alternativas que lhes são colocadas. Isto é uma contradição à promoção da literacia em saúde. A literacia em saúde e a participação andam lado a lado.

A literacia em saúde não se esgota nas paredes dos hospitais e dos centros de saúde, ou seja, nos prestadores de saúde mais diretos. Temos que olhar para o sistema como um todo. As instituições ao nível local e comunitário, o suporte social e familiar, também têm um papel essencial neste domínio.

HN – Qual é o impacto do aumento da literacia em saúde no nível de bem-estar e saúde das pessoas?

ARG – Quer na população com doenças crónicas, quer na população em geral, vemos claramente uma relação entre o nível de literacia em saúde e a auto-perceção do estado de saúde. Pessoas com níveis mais elevados de literacia em saúde percebem a sua saúde como melhor.

Nos indicadores mais específicos de gestão da doença, encontramos também uma relação entre níveis mais elevados de literacia em saúde e melhores indicadores de auto-gestão da doença.

Existe também uma relação importante com a própria utilização dos cuidados de saúde. Indivíduos com níveis mais elevados de literacia em saúde evidenciam uma utilização mais adequada dos serviços: menor recurso à Urgência, maior capacidade para auto-gerirem as ocorrências que vão surgindo, e uma utilização dos cuidados preventivos mais adequada.

HN – Muitas das pessoas com doenças crónicas são idosas. Quais os caminhos possíveis para os envolver mais na gestão da sua doença?

ARG – Nos nossos trabalhos de investigação vemos claramente que existe uma relação entre a idade e o nível de literacia em saúde. As pessoas mais velhas, com comorbilidades, são aquelas que, na verdade, são confrontadas com maiores exigências. Precisariam de fazer uma utilização mais adequada da informação e as necessidades de literacia em saúde coloca-as numa situação de grande vulnerabilidade.

Há várias dimensões que contribuem para o aumento da literacia em saúde. Por um lado, uma relação de confiança com os profissionais de saúde e a necessidade de estes se colocarem numa posição em que as pessoas não se sintam constrangidas para fazer perguntas; eles próprios devem tomar a iniciativa de convidar as pessoas a expor as suas dúvidas e necessidades, através da utilização de estratégias de comunicação mais ativas e que envolvam os cidadãos. Claramente, esta relação é essencial.

Por outro lado, os serviços de saúde têm de oferecer condições de “navegação” mais fáceis. As pessoas têm muita dificuldade em saber onde se devem dirigir, de acordo com as suas necessidades, e sentem-se perdidas. Entram num serviço de saúde e, por exemplo, as indicações que encontram não correspondem minimamente aos recursos que as pessoas têm para os interpretar. Recentemente, entrei num centro de saúde que tinha, à entrada, um grande cartaz relacionado com a retoma dos cuidados de saúde primários, cheio de siglas: DM2, DM1, HTA… Se as pessoas sentem que o ambiente lhes é muito estranho e desconfortável, irão colocar-se numa postura de maior passividade e de menor envolvimento na interação com os profissionais de saúde. Os serviços têm que estar orientados para que as pessoas que se sintam mais “em casa”, ou seja, mais confortáveis.

Precisamos também de olhar para o suporte social e é aqui que emerge o papel da família. O envolvimento dos familiares na saúde das pessoas é tanto mais importante quanto mais velhas são, até porque pode haver problemas de memória e de mobilidade.

Temos, por outro lado, a questão das infraestruturas locais. É muito importante trabalhar em rede. Há uma série de respostas para a população com doenças crónicas e para as pessoas mais idosas, mas existem grandes fragilidades no que diz respeito a esse trabalho em rede.

HN – Os serviços continuam sem comunicar entre si?

ARG – Exatamente. Daí a necessidade de fornecer informação de transferência, escrita, que permita a outros prestadores oferecerem um melhor serviço e ajudar a pessoa a compreender e utilizar melhor a informação.

Existem algumas experiências de nível local que mostram como o trabalho em rede transforma completamente aquilo que cada um é capaz de fazer pela sua saúde.

HN – Então o “défice” não é só das pessoas…

ARG – Se olharmos para os documentos estratégicos e para o plano de ação para a literacia em saúde, vemos que estão ainda tendencialmente marcados por essa perspetiva de défice e orientada numa lógica biomédica. Ora, a literacia em saúde precisa de ser olhada numa perspetiva de necessidades e também de forças e recursos, ou seja, de uma forma sistémica. Nunca é só um problema da pessoa; tem a ver com todo o ambiente que a rodeia.

É relativamente fácil percebermos que uma pessoa pode ter um nível de literacia mais baixo mas se tiver uma relação próxima com o seu médico,  suporte familiar e uma série de infraestruturas na comunidade que a apoiem, isso pode não ser um problema tão grave, em comparação com a situação de um indivíduo que receba menos apoio.

Quando focamos a literacia em saúde apenas no indivíduo, vemos apenas uma parte muito pequenina da fotografia.

HN – A Escola Nacional de Saúde Pública tem em curso numerosos trabalhos de investigação na área da literacia em saúde. De que forma contribuem para o desenvolvimento de intervenções baseadas no conhecimento?

ARG – Os trabalhos mais recentes desenvolvidos pela ENSP têm a intenção, de facto, de contribuir para o desenvolvimento de intervenções no terreno.

No trabalho sobre literacia em saúde da população migrante, por exemplo, vamos agora avançar para uma abordagem junto dos migrantes e dos prestadores, para identificar o que podemos fazer no sentido de melhorar a saúde, a literacia em saúde e a própria responsividade dos serviços a estas necessidades.

Temos também um projeto local com o concelho de Oeiras em que procuramos fazer um diagnóstico dos níveis de literacia em saúde da população do concelho. Identificámos já necessidades claras na população mais velha e é nessa faixa etária que nos estamos a focar, numa perspetiva de desenvolvimento de intervenções ajustadas a essa realidade.

Em curso estão também vários trabalhos na área da diabetes, em parceria com a Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal (APDP). A diabetes e, nomeadamente, a DM2, é claramente uma das doenças crónicas para as quais temos perspetivas de futuro mais negativas no que diz respeito à evolução da doença. Consideramos que investir na literacia em saúde é estratégico para, por um lado, prevenir e reduzir os novos casos de doença e, por outro, contribuir para uma melhor gestão da população com diabetes.

Essencialmente, procuramos tentar compreender de que modo a literacia em saúde afeta os resultados em saúde na população com diabetes e trabalhar com os profissionais de saúde e com os utentes para melhorar o tipo de resposta que é dada às necessidades dos doentes.

Toda a nossa investigação procura não só contribuir para o desenvolvimento do conhecimento mas também para a conceção de intervenções que sejam identificadas, desenvolvidas e implementadas de uma forma participativa, com a população e os prestadores. Desta forma, teremos maiores garantias de viabilidade, aceitação e relevância para as populações que queremos servir.

Para sermos consistentes com os princípios da promoção da literacia em saúde, precisamos de construir intervenções com as pessoas e não para as pessoas.

Entrevista de Adelaide Oliveira

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