Uma mão cheia de dias é pouco para as famílias que perdem um filho para o cancro

1 de Setembro 2021

O cancro em crianças e jovens é raro e a taxa de sobrevivência muito elevada, mas quando o desfecho é fatal a dor é intensa para a família, que precisa bem mais do que cinco dias para enfrentar o luto.

Este é o tempo que a legislação prevê na licença pela perda de um filho, uma situação que a Acreditar – Associação de pais e amigos de crianças com cancro quer mudar com o lançamento, hoje, de uma petição que apela ao alargamento deste período para 20 dias.

Há quase 30 anos a acompanhar a dor destas famílias, a psicóloga clínica Maria de Jesus Moura, uma das fundadoras da Acreditar, defendeu, em entrevista à agência Lusa, que “cinco dias são insuficientes para uma vivência de perda de uma criança ou adolescente”.

“Não são certamente estes dias que permitem que a família se organize. Os pais não têm condições físicas e emocionais para tratarem das questões burocráticas relacionadas com o falecimento do filho”, disse a também diretora da Unidade de Psicologia do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa.

Num processo de luto normal, em que não há um nível de dependência tão intenso e de relação de proximidade como é a dos pais com um filho menor, o período é aproximadamente um ano.

“Perante a perda de um filho menor, o luto vai arrastar-se no tempo e o processo de luto é uma montanha russa”, porque há momentos em que “os pais estão submergidos numa dor intensa em que por vezes a vida não faz sentido”, sendo com esforço que dão continuidade ao seu dia a dia, e há outros momentos em que conseguem “atenuar essa dor e é possível dar continuidade ao projeto da família, assim como aos pessoais.

A “dor muito intensa” é comum nas famílias que perdem filhos menores, mas as respostas no processo de luto são distintas” dependendo da estrutura de funcionamento pessoal e familiar, da vivência da doença e do contexto da perda.

“É totalmente diferente” a morte ter ocorrido por uma intercorrência, como uma infeção, quando os pais estavam expectantes de que tudo ia correr bem, do que ser um processo mais longo de doença progressiva em que já há um trabalho realizado feito com as famílias sobre as questões das perdas vividas no percurso da doença, explicou.

Neste último caso, os pais reconhecem que há “’distress’ intenso” e lidam com perdas desde o momento do diagnóstico. que estrutura o “luto antecipatório”.

Há todo “o peso” de ser uma doença oncológica: “Todos sabemos que a taxa de sobrevivência tem vindo a aumentar consideravelmente [superior a 80%], mas não deixa de ser uma ameaça muito significativa por ser uma doença crónica, complexa e ameaçadora de vida”.

Este sofrimento que é vivido ao longo da doença pode desenvolver recursos de adaptação ou não”, disse a psicóloga, adiantando que “cada indivíduo terá uma forma única de lidar com estes processos e cada família também se estrutura de um modo particular consoante as suas vivências e história familiar”.

“Há casos em que há pais que não voltam a ter filhos e há outros casos em que voltam a ter, mas a presença deste filho continua na vida deles para a vida”, salientou.

Apesar de “a dor ser a mesma”, a forma como os homens e as mulheres lidam com ela é diferente.

“Na maior parte das vezes, as mulheres têm mais necessidade de exprimir as emoções, enquanto os homens estão mais centrados em se estruturar, organizar, planear e às vezes no processo de luto isto também é complexo, porque a mãe tem uma necessidade e o pai pode ter outra”, explicou.

O acompanhamento psicológico pode ajudar na fase inicial do luto, para perceberem que, apesar de terem formas de lidar diferentes, têm papéis complementares que podem ajudar até nas tarefas de educar os outros filhos e de dar continuidade, porque “essas exigências continuam”.

“Há aqui muitas exigências. Não só de seguir com a sua vida para frente, mas dar continuidade à família e reconstruí-la, porque a família não volta mais a ser a mesma”, observou.

Na investigação que tem vindo a desenvolver em parceria entre o IPO de Lisboa com a Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa sobre a vivência parental nas diversas etapas da doença, os resultados apontam que “a forma como os pais lidam com a doença no momento do diagnóstico é determinante para a forma como depois vão lidar no percurso da doença”.

“Isso não quer dizer que depois na perda não haja alterações significativas, que têm a ver como estas famílias se vão reorganizar e reestruturar para dar continuidade à sua vida”, afirmou.

Da longa experiência clínica de trabalho com estas família, Maria de Jesus Moura conclui que estes pais acabam por reconhecer que, “quando se perde alguém, esse alguém deixa um legado”.

“Mesmo com muita dor e sofrimento”, os pais conseguem reconhecer que os seus filhos lhes ensinaram “a ser lutadores”.

LUSA/HN

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