Unidade de Saúde Familiar da Baixa: o centro de 94 nacionalidades de utentes

10 de Junho 2022

O “Google Translator” ou uma criança que faz de “tradutor profissional” passaram a fazer parte da rotina das consultas médicas de uma Unidade de Saúde Familiar (USF) lisboeta, frequentada por pessoas de 94 nacionalidades.

A USF da Baixa, na Praça Martim Moniz, tem 16 mil utentes, dos quais 30% são estrangeiros, segundo o coordenador do centro, Martino Gliozzi.

Entre imigrantes do Brasil e dos países africanos de língua portuguesa, há também pacientes do Bangladesh, Nepal, Paquistão ou Índia. Por isso ninguém estranha quando nas consultas a língua portuguesa é posta de parte.

Neste centro de saúde todos os funcionários sabem inglês, mas há quem conte com cinco línguas no currículo, como é o caso de Martino Gliozzi que fala Italiano, Português, Inglês, Francês e Espanhol.

“Em Bengali ainda sabemos dizer algumas coisas, como “Bem-Vindo”, “Obrigado”, também para quebrar o gelo ou brincar um bocadinho com as crianças. Sei dizer os números, há algumas palavras que a gente sabe dizer nas várias línguas, mas não conseguimos fazer uma consulta em Bengali”, disse à Lusa Martino Gliozzi.

Quando o paciente não percebe Português, os profissionais mudam automaticamente para inglês e se a comunicação continua a falhar recorrem a gestos, imagens de computador ou ao “Google Translator”.

“Eu digo uma coisa em Português e o computador fala Hindi ou Bengali. Quando não se percebe, usamos imagens ou as mãos”, explicou o coordenador da USF, defendendo que “a motivação” dos profissionais faz a diferença e é normal mudar de técnica cada vez que uma se revela falível.

Susana Nunes, secretária clínica da unidade, confirma o “truque”: “Usamos o inglês, o francês, o espanhol e depois o Google Tradutor. Também a linguagem através das mãos, do sorriso e dos olhos. Tudo nos leva ao foco no utente e até agora acho que tivemos sucesso”.

Mas há quem chegue à consulta prevenido. Há quem apareça acompanhada pelo marido ou pelo filho, diz Martino, apontando as mulheres do Bangladesh como um “caso clássico”.

“Não é o ideal, porque imagine uma consulta de planeamento familiar com uma mulher, com o marido e o filho presentes, a falar de abortos, de IVG ou de pílula. Não faz sentido, mas às vezes tem de ser”, admitiu o coordenador.

O médico de família Cristiano Figueiredo corrobora o cenário, lembrando que a presença de um terceiro elemento pode levantar problemas de confidencialidade.

“Algumas questões mais íntimas podem não surgir na consulta e não é raro serem crianças. Se a família estiver cá há uns bons cinco ou seis anos, já tem uma criança em casa que será mais ou menos fluente em português, se for para a escola. E nesse caso, às vezes, os pais recorrem aos filhos para ajudar na tradução. Isso não é de todo o ideal e é contra todas as boas práticas mas, às vezes, não temos alternativa”.

Na USF da Baixa, as linhas telefónicas de tradução do Centro Nacional de Apoio à Integração de Migrantes (CNAIM) são pouco utilizadas.

Os médicos explicam que o apoio telefónico obriga a uma marcação prévia, mas por vezes as consultas atrasam-se ou são marcadas no momento em que o paciente chega ao centro de saúde.

A atual USF da Baixa resulta de um projeto pensado por Martino Gliozzi, que há sete anos conseguiu atrair uma equipa jovem entusiasmada pela multiculturalidade do bairro.

Apoiar quem mais precisa é um dos motivos que move toda a equipa, que tem feito parcerias com associações locais para tentar ajudar a comunidade.

Neste processo, o centro de saúde começou também a contar, num registo informal, com profissionais de saúde do sul da Ásia.

“Temos vindo a conhecer alguns profissionais de saúde do sul da Ásia, portanto, médicos do Bangladesh, do Nepal, mas sobretudo Bangladesh, que muitas vezes nos pedem para ter algum contacto com os cuidados daqui, para perceberem como funcionam e através de uma parceria informal com duas associações de migrantes”, contou à Lusa Cristiano Figueiredo.

A presença destes médicos ou enfermeiros nas consultas acaba por ajudar na tradução, mas é parca.

“Era extremamente importante (contar com estes profissionais de forma regular) na medida em que o Martim Moniz tem muita população do sul da Ásia e temos os profissionais de saúde com esse background cultural e linguístico, que poderiam ajudar imenso a melhorar a prestação de cuidados de saúde culturalmente mais sensíveis”, disse.

É o caso de Shipra Das, de 30 anos, e do marido Dabashin Das, 40 anos. A família do Bangladesh vive agora em Agualva-Cacém mas é na USF da Baixa que mantém o seu médico de família, ainda dos tempos em que vivia no bairro.

Dabashin fala inglês e um pouco de português. A mulher tenta comunicar, com dificuldades, em inglês.

A jovem mãe do Bangladesh chegou ao centro de saúde acompanhada pelo marido e pela filha. À Lusa disse que antes frequentava um outro centro de saúde onde ninguém falava inglês, tornando a comunicação impossível.

“Frequentar o outro centro de saúde era muito difícil para mim, porque ninguém falava inglês. Eu gosto deste aqui”, disse.

Também Dabashin Das diz gostar “de tudo” na USF da Baixa: “Aqui toda a gente fala inglês e português, nunca há problema. Gosto muito do meu médico. É muito boa pessoa, fala português e inglês e deu-me muitas informações uteis sobre serviço social para a minha mulher. Deu-me ótimas soluções”, disse Dabashin, que acabou a conversa a falar em inglês: “Cristiano is the best”.

A multiculturalidade da USF “traz imensos desafios a nível da prestação de cuidados, mas também torna a prática médica um bocado mais cosmopolita, mais europeia. Poderia estar numa grande cidade europeia a fazer perfeitamente este trabalho, em Londres ou em Bruxelas”, diz Cristiano Figueiredo.

LUSA/HN

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