“Existe uma diretiva comunitária já com alguns anos que determina – e a maioria dos países assim o fez – que estes enfermeiros especialistas detêm competências para seguir autonomamente a gravidez de baixo risco nos centros de saúde”, mas que nunca foi transposta em Portugal, adiantou à agência Lusa Ana Rita Cavaco.
Segundo a bastonária, se esta regulamentação comunitária tivesse sido aplicada em Portugal, “metade das questões” que se têm colocado nas últimas semanas nas urgências de obstetrícia e ginecologia e bloco de partos, devido à falta de médicos para completar as escalas de serviços, estaria amenizada.
“Se esta diretiva tivesse sido transposta, significaria que as grávidas teriam um seguimento normal e regular nos centros de saúde das gravidezes de baixo risco, recorrendo muito menos à urgência” dos hospitais, adiantou Ana Rita Cavaco, ao salientar que muitas mulheres recorrem aos hospitais por falta de acesso aos cuidados primários.
Recentemente, o Observatório de Violência Obstétrica também lamentou a “total dependência” dos hospitais dos médicos especialistas, defendendo que deveria ser dada mais autonomia aos enfermeiros de saúde materna e obstetrícia no acompanhamento das grávidas.
“Os serviços são organizados com total dependência de médicos especialistas, ao invés de ser dada autonomia aos enfermeiros especialistas em saúde materna e obstetrícia (EESMO), o que resulta num total colapso do sistema de apoio às mulheres grávidas em todas as fases do seu acompanhamento”, adiantou o observatório em comunicado.
De acordo com a Ordem dos Enfermeiros (OE), existem em Portugal 3.182 enfermeiros especialistas em saúde materna e obstetrícia.
A diretiva de janeiro de 1980 indicava que os Estados-membros deveriam assegurar que esses profissionais de saúde se encontravam habilitados para, entre outras funções, pedir exames como ecografias e prescrever medicamentos tomados habitualmente durante a gravidez.
Ana Rita Cavaco explicou que esses profissionais de saúde fazem as consultas às grávidas nos centros de saúde, mas depois para “ter o papel dos exames e a receita dos medicamentos têm de andar atrás dos médicos a pedir isso”.
“É possível que o enfermeiro especialista já faça isso tudo sem o médico ver a pessoa, mas o enfermeiro continua dependente do médico para fazer a parte burocrática, o que não faz sentido absolutamente nenhum”, sublinhou a bastonária.
Além disso, são os enfermeiros especialistas em saúde materna e obstetrícia que, na maior parte dos hospitais do país, fazem os partos normais, salientou a bastonária, ao considerar que a diretiva comunitária, que permitiria uma melhor organização, “não tem andado para a frente porque os médicos nunca quiseram que andasse”.
De acordo com Ana Rita Cavaco, os médicos “nunca quiserem que se fizesse a transposição da diretiva” porque entenderam que, desta forma, os enfermeiros estariam a “entrar no seu campo de competências”.
“Há competências que são partilhadas entre os vários profissionais de saúde. Temos competências que são partilhadas com os médicos. A vacinação é dos enfermeiros, mas isso não exclui que os médicos possam vacinar”, alegou a enfermeira.
Segundo disse, o Serviço Nacional de Saúde debate-se também com outras “questões estruturais”, que não podem estar focadas apenas nas matérias salariais de uma classe profissional, e que dizem respeito à organização.
“Se quisermos olhar só à questão do dinheiro, estes enfermeiros especialistas em saúde materna que trabalham nos hospitais, e que não tiveram acesso à categoria de enfermeiro especialista na carreira, ganham 900 e tal euros por mês líquidos e, no entanto, têm 20 anos de profissão”, alertou a bastonária.
Segundo a bastonária, Portugal está acima da média dos países da OCDE no número de médicos por 100 mil habitantes, ao contrário do que se verifica com os enfermeiros.
“Não se pode continuar a fazer de conta que os bancos de 24 horas [feitos por médicos] são pontuais, que não existem tarefeiros com um no Algarve que ganhou 326 mil euros num ano. Não vale a pena tapar o sol com a peneira”, alertou Ana Rita Cavaco.
A OE indicou na quarta-feira a sua representante para a comissão de acompanhamento criada pelo Ministério da Saúde em resposta à crise nos serviços de urgência de obstetrícia e ginecologia, que é a presidente do Colégio de Saúde Materna e Obstetra da ordem e chefe da obstetrícia do hospital da Póvoa do Varzim.
Nos últimos dias, vários serviços de urgência de obstetrícia e ginecologia e bloco de partos de vários pontos do país tiveram de encerrar por determinados períodos ou funcionaram com limitações, devido à dificuldade dos hospitais em completarem as escalas de serviço de médicos especialistas.
LUSA/HN
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