Combate à mutilação genital na Guiné-Bissau é hoje “mais complicado”

23 de Abril 2023

A presidente do Comité Nacional para o Abandono das Práticas Nefastas na Guiné-Bissau considera que o combate à mutilação genital feminina (MGF) enfrenta hoje desafios “muito mais complicados”, em resultado da proibição legal, que tornou a prática “escondida”.

“Os desafios são enormes”, avalia Marliatu Djaló Condé, em entrevista à Lusa, em Lisboa, onde teve uma série de encontros nesta semana, organizados pela Associação dos Filhos e Amigos de Farim, pela Associação Mulheres Sem Fronteiras e pela Associação para o Planeamento da Família, que combatem a MGF em Portugal.

“Antigamente, sabia-se quem é que faz[ia], onde é que (…) se faz[ia] e de um tempo para cá, desde a existência da lei, passou a ser tudo de uma forma escondida”, compara, recordando que estudos feitos em 2018 e 2019 “mostram um aumento” da prática na Guiné-Bissau, onde se estima que metade das mulheres sejam mutiladas.

A mutilação (ou excisão, nome mais utilizado na Guiné-Bissau) consiste na retirada total ou parcial de partes genitais, com consequências físicas, psicológicas e sexuais graves, podendo até causar a morte.

O aumento pode explicar-se, em parte, porque o tema deixou de ser tabu. “Agora fala-se abertamente sobre o tema”, reconhece Marliatu, acrescentando que é preciso analisar a permeabilidade das fronteiras com os países vizinhos, nomeadamente com a Guiné-Conacri, onde praticamente todas as mulheres são submetidas à excisão.

Neste contexto, o Comité está a avançar com uma “campanha transfronteiriça” entre Guiné-Bissau, Guiné-Conacri e Senegal, que partilham a etnia fula (e respetiva língua), na qual a prática está enraizada.

Os três países têm leis que proíbem a excisão. Porém, “tem um fluxo de pessoas, entre as fronteiras, para praticarem a excisão”, nota Marliatu, adiantando que, como “a maioria das pessoas não são letradas”, a campanha vai apostar no áudio e no audiovisual, para as rádios comunitárias e as redes sociais. “Vamos uniformizar o que é dito nos três países e em simultâneo”, explica.

Na Guiné-Bissau, único país de língua portuguesa que figura nas listas internacionais sobre a prática, a MGF é punida por lei desde 2011.

“Não diria que é mais fácil [o combate hoje], porque a nova geração ainda tem muita pressão e influência da geração anterior”, ressalva Marliatu, reconhecendo a vantagem de existirem atualmente “mais mulheres alfabetizadas” e “muitos líderes religiosos e muitos homens” a apoiar publicamente a erradicação da prática.

“A participação do homem é muito fundamental nisto, porque estamos a falar de uma sociedade patriarcal e extremamente machista, onde o poder de decisão compete ao homem. Ter o apoio, a participação ativa do homem neste processo faz toda a diferença”, acredita.

Com 31 anos, Marliatu foi submetida à excisão, juntamente com as irmãs mais velhas, quando teria uns quatro anos. “Lembro-me de pouca coisa”, diz. “Ninguém se opôs”, lamenta.

Fula e nascida numa “comunidade muito conservadora” e numa família numerosa, todas as mulheres da família foram “vítimas da excisão” e a maioria das suas irmãs tiveram casamentos precoces ou forçados.

Ainda assim, um dos seus irmãos foi dos primeiros lideres religiosos na Guiné a dizer que a excisão não faz parte do islão. “São práticas muito enraizadas nas nossas culturas e que são, até um certo ponto, conectadas com uma determinada religião. Quando é assim, são aspetos (…) socialmente muito sensíveis”, explica.

O Comité Nacional para o Abandono das Práticas Nefastas desenvolve, há anos, campanhas de consciencialização, mas não tem sequer uma sede própria. Está à espera que o governo guineense ceda um terreno, onde quer instalar um centro de acolhimento e apoio psicossocial para vítimas de violência com base no género, “coisa que não existe” na Guiné-Bissau.

Todos os funcionários, incluindo a presidente, são mantidos exclusivamente através de projetos financiados, apesar de o Comité (que integra cerca de 30 organizações da sociedade civil) ter sido criado pelo próprio Estado guineense, que “tem colaborado a nível político”, mas “ainda não” garante qualquer apoio financeiro.

Com projetos em várias áreas, da educação à saúde, o Comité tem apostado nos “diálogos comunitários”, recorrendo aos 50 animadores que tem no terreno.

Tem procurado também “trazer discursos mais positivos” e mostrar como se vive sem a mutilação. “As pessoas que não foram excisadas sofrem de discriminação no meio familiar”, lembra Marliatu, salientando a importância de mostrar mulheres não excisadas “que se sentem bem e são muçulmanas praticantes” e rapazes que possam “desconstruir a ideia de que o homem muçulmano não se pode casar com uma mulher que não foi excisada”.

O Comité está também a preparar manuais de alfabetização, porque “o analfabetismo, que afeta maioritariamente as mulheres, é uma das maiores causas para a continuidade destas práticas”, realça Marliatu, formada em Economia e eleita presidente do Comité em setembro de 2021.

LUSA/HN

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