O projeto FUTOURWORK – Improving Tourism and Hospitality Worker Well-Being Through Social Dialogue tem como objetivo promover um maior bem-estar e melhores condições de trabalho para os trabalhadores do turismo. No consórcio formado por vários países europeus, a Universidade Lusófona está representada pelas investigadoras Tânia Gaspar, do HEI-Lab: Digital Human-Environment Interaction Lab, e Mafalda Patuleia, do Intrepid Lab|CETRAD.
HealthNews (HN) – Como se caracteriza o projeto Futourwork?
Tânia Gaspar (TG) – Este projeto envolve um processo importante denominado diálogo social. Vai ser muito interessante porque vamos fazer entrevistas às associações empresariais do setor, a CEO, administradores, portanto, pessoas que têm capacidade de tomar decisões. Em termos governamentais, tentaremos junto das autoridades e da tutela perceber qual é a legislação que temos, o que é que poderá melhorar, quais são as dificuldades, até porque, cada vez mais, temos que nos alinhar muito bem com a regulamentação europeia. Mas também vamos estar junto das pessoas, ou seja, vamos fazer entrevistas a trabalhadores do turismo, colocando o foco nas mulheres, nos migrantes e nas pessoas que de alguma forma estão mais desprotegidas ou cujas condições de trabalho são menos sólidas e menos reguladas. Vamos tentar perceber como é que é a sua experiência, que dificuldades têm, com que barreiras se deparam, quer a nível do sistema, quer a nível do seu trabalho, para podermos apoiar e garantir que todo este caminho que os trabalhadores têm que fazer, que muitas vezes é difícil, fica mais ágil e mais transparente, para que as pessoas possam ingressar nesta carreira, que é algo importante e é bom para o desenvolvimento do nosso país e de outros países, mas tem de ser feito com segurança e com bem-estar.
Além disso, vamos criar um índice de bem-estar. Vamos fazê-lo para as entidades empregadoras na área do turismo em relação aos profissionais. Ou seja, quando eu for para um hotel, quando for utilizar uma agência de viagens, etc., vou ficar a saber como é que os trabalhadores avaliam a sua empresa, de forma a criar uma dinâmica positiva e construtiva de competitividade, no sentido desta valorização dos profissionais do turismo. Muitas vezes são atividades sazonais, que criam dificuldades pela forma como nós estamos mais habituados a ver o trabalho – uma relação laboral mais estável, mais duradoura. Tudo isto acaba por ficar esbatido e diferente nesta área, e precisamos de ver como é que é possível, realmente, criar melhores condições para estes trabalhadores.
O projeto envolve desenvolver um estudo de caso, um estudo aprofundado, desde as dimensões mais macro até às características mais individuais, societais, etc., no sentido de compreender este fenómeno de forma aprofundada, identificar quais são as oportunidades, quais são as maiores dificuldades e propor ações e criar recursos para que esta questão possa melhorar e os trabalhadores possam ter uma melhor qualidade de vida, e que possam fazer o seu trabalho, que é tão bom para muita gente, mas que também eles próprios tenham bem-estar – portanto, não tenham que proporcionar o bem-estar dos outros à custa do seu bem-estar. Também a própria população começar a ter uma maior consciência de que, por exemplo, às vezes esta questão dos preços muito competitivos pode trazer repercussões menos positivas para as pessoas que estão a trabalhar. Acho que vai ser um projeto muito interessante e com real impacto social.
O investimento neste projeto revela que a própria Europa está a valorizar este tema. Faz todo o sentido porque a Europa vai ter que se reorganizar muito nestas questões. Portugal, em princípio, será um país de turismo, seremos fortes nesta área, mas é importante que isto não fique sem regulação ou com condições negativas. Se este sistema não for regulado, as condições de trabalho podem ser piores e pode existir um grande turnover. Se formos falar com os profissionais do turismo, as lideranças ou os CEO, eles dizem que há uma grande dificuldade em manter os trabalhadores. É importante perceber quais são as condições que lhes criam e como é o ambiente de trabalho. Às vezes não é apenas o salário, também tem a ver com outras condições, como a valorização. Nós sabemos dos outros setores de atividade que uma das coisas importantes é o profissional sentir que não é um número. Nenhum profissional gosta de sentir que é descartável e que tanto faz que estivesse ele ou estivesse outro. Há outros fatores para além da questão financeira que podem ajudar as pessoas a sentirem-se melhor no trabalho que estão a fazer e a diminuir, depois, todas essas mudanças que às vezes não são boas para ninguém, nem para os empregadores, nem para os profissionais. E, portanto, é necessário criar um diálogo social entre os profissionais, as plataformas e a tutela, no sentido de, em conjunto, podermos melhorar estas condições.
No fundo, no final queremos ter esta informação toda agregada no sentido de ter práticas e recursos transparentes; que os consumidores possam ter essa informação e essa consciência e tomar uma decisão mais informada; mas também os empregadores, porque por vezes também eles queriam fazer diferente e acabam por ser engolidos pelo sistema. Portanto, haver uma forma de eles também saberem como é que poderão fazer as coisas da melhor maneira e captar os profissionais.
HN – O projeto vai decorrer em que período e o que é que acontecerá em Portugal?
TG – O projeto tem vários work packages, ou seja, tarefas. Por exemplo, umas equipas vão desenvolver os instrumentos de diálogo social, outras vão trabalhar mais na área tecnológica, outras no bem-estar, e Portugal vai ficar responsável pela construção do índice de bem-estar. Eu sou coordenadora do Laboratório Português de Ambientes de Trabalho Saudáveis e, portanto, tenho um trabalho já bastante robusto na área, a nível global, ou seja, das várias especialidades. Ainda recentemente saiu, por exemplo, o relatório sobre os ambientes de trabalho saudáveis nas organizações de saúde do SNS. Portanto, há vários setores que vou avaliando de uma maneira mais aprofundada. Temos que compreender quais são as especificidades do setor do turismo e hospitalidade, as condições destas profissões, para depois conseguir compreender o que é que é valorizado por elas e o que é que poderemos melhorar. Portanto, o nosso trabalho aqui vai ser, através desta auscultação global, conseguir identificar quais são os critérios e os indicadores para o bem-estar; depois vamos construir o instrumento, que tem que ser validado em termos estatísticos, em termos psicométricos, etc., para depois ser traduzido para as outras línguas e começar a ser utilizado em todos os outros países. Este vai ser o papel mais importante do nosso país. Claro que nós colaboramos em todos os work packages. Cada país colabora nos outros, mas fica mais responsável por um.
Entretanto, também já temos uma listagem de entidades nacionais com as quais vamos iniciar o contacto. Toda a gente que quiser estar envolvida é importante que esteja desde o princípio, para as pessoas não pensarem que isto é algo que está a surgir de fora e que vai ser imposto. Gostávamos muito que tudo isto fosse feito numa co-construção, porque não queremos estar do lado dos empregadores ou do lado dos profissionais. Queremos é que o sistema em si, com todas as necessidades de cada uma das partes, consiga funcionar o melhor possível. E, portanto, já temos uma listagem de associações nacionais e entidades governamentais e não governamentais relacionadas com o turismo. Em setembro, vamos começar logo com estes parceiros no sentido de criar uma rede nacional, para que depois essa própria rede possa levar a cabo a implementação do projeto, porque o objetivo é que ele continue. Se tivermos todas estas entidades dentro do consórcio, vai ser muito mais sustentável.
HN – Queria que aprofundássemos a importância de não esquecer o bem-estar dos trabalhadores, que hoje em dia é cada vez mais abordado.
TG – Trabalho nesta área há muito tempo, desde antes da pandemia, e realmente era muito mais difícil passar a mensagem da importância do bem-estar. Quando falamos de saúde mental, é importante perceber que não estamos a falar da ausência de doença mental. Ou seja, saúde mental é muito mais do que isso. Saúde mental é nós termos relações positivas, conseguirmos relacionar-nos com os outros, sermos empáticos, disponíveis, conseguirmos resolver as coisas do nosso dia-a-dia, refletir, resolver problemas, apoiar os outros, termos uma perspetiva a médio e longo prazo da nossa vida, conseguirmos ter competências para gerir os desafios da vida, sejam aqueles normais do crescimento, sejam depois aqueles como a pandemia, a recessão económica, etc. A saúde mental é isto tudo, é nós conseguirmos estar bem, conseguirmos identificar as situações que ocorrem na nossa vida e ter ou desenvolver competências para lidar com elas, e pedir apoio quando é preciso, ou seja, o suporte social é fundamental, porque eu posso não conseguir lidar com uma coisa, mas se puder pedir ajuda a outra pessoa, eu posso conseguir resolver. E, obviamente, isto aplica-se no trabalho. Se eu tiver com mais saúde mental e com mais bem-estar, consigo ter melhores relações interpessoais laborais, ou seja, consigo ter melhores relações com os meus colegas, com as minhas lideranças e com os meus clientes. Por outro lado, também consigo estar mais disponível para pôr ao serviço dos problemas e das situações que surgem no trabalho a minha capacidade de pensar sobre isso e querer resolver isso, ou seja, ter um papel ativo de incentivo para resolver os problemas.
Por outro lado, é importante que exista um equilíbrio entre a minha vida profissional e a minha vida pessoal. Se eu sou um todo e para eu estar equilibrado preciso de estar bem nestas áreas todas, então eu não posso só dedicar-me ao trabalho e esquecer o resto da minha vida. Embora às vezes as empresas possam pensar que não têm nada a ver com a família do funcionário, o funcionário vai estar melhor a fazer o seu trabalho se ele também estiver melhor com a sua família, e, portanto, se eu quero que ele faça melhor o seu trabalho, é importante que o concilie com a família. E, por outro lado, também a perspetiva de saúde mental no sentido da nossa contribuição para o todo. Uma pessoa que esteja melhor consigo própria consegue ter uma maior capacidade de altruísmo, ou seja, consegue pensar mais nos outros, consegue ajudar mais os outros. Quando nós estamos muito tristes ou ansiosos, é natural que nos fechemos em nós. Estamos tão preocupados com a nossa situação, que não conseguimos ver os outros. E, portanto, eu consigo trabalhar muito melhor para mim e para a minha equipa se estiver com saúde mental. Além disso, temos a questão da motivação. Se eu estiver a fazer um trabalho que não gosto, ou sinto que não é valorizado ou que é mal remunerado, vou acabar por fazer menos, menos bem, desistir cada vez que algo não está a funcionar tão bem. Ou seja, o meu próprio desempenho, mesmo sem ser por querer, é menos bom quando eu não estou bem. Agora, a nossa questão é: como é que nós convencemos as entidades empregadoras disto?
Fizemos um estudo, que está publicado, no qual através de um modelo matemático foi possível concluir que, numa cultura organizacional de maior bem-estar e saúde mental e maior preocupação pela qualidade de vida do profissional, tínhamos menos riscos psicossociais do trabalho, mais qualidade de vida do profissional, maior envolvimento do profissional no seu desempenho, ou seja, o profissional comprometia-se a ter objetivos e definia os objetivos com a empresa (grande parte das vezes as empresas dão objetivos completamente desajustados, por isso a pessoa está sempre em incumprimento; é importante que haja um estabelecimento de objetivos realista). Tudo isso estava estatisticamente relacionado com maior satisfação do profissional, maior satisfação dos utentes (era na área da saúde) e melhores resultados económico-financeiros. Agora, temos que continuamente tentar promover esta ideia. Depois da pandemia, as pessoas ficaram realmente mais conscientes. Mais conscientes do seu bem-estar, começaram a perceber o que é que é mais importante, a valorizar mais outras coisas que se calhar às vezes faziam muito rápido. Naturalmente, as empresas, como as pessoas estão a mudar, também têm que mudar. Há determinados setores de atividade em que isso é muito óbvio. É o caso da área das tecnologias, porque há muito investimento, os profissionais são muito valorizados porque há poucos, em termos de oferta e procura do mercado, e, portanto, há empresas que já fazem maravilhas pelos seus profissionais, porque têm que fazer. Agora, nós queremos que isto também aconteça noutros setores de atividade, onde não há tanta competitividade. E começa a acontecer. No Laboratório Português dos Ambientes de Trabalho Saudáveis, fazemos a avaliação das organizações dos vários setores e, depois, traçamos um plano de ação para a melhoria dos ambientes de trabalho. Grande parte das organizações que implementa o plano vai tendo melhorias. Ou seja, há uma preocupação para avaliar, para ter ações concretas para melhorar. Mas há muito trabalho a fazer, definitivamente.
O setor privado e o público são diferentes. Por um lado, no setor privado, em determinadas áreas, há maior competitividade e, portanto, as empresas às vezes têm mais autonomia para fazer mudanças no sentido de chegar às pessoas. No LABPATS, comparámos o setor público com o privado, e o público está pior. A função pública e, especialmente, a administração central têm indicadores muito pouco positivos a nível do ambiente de trabalho saudável, porque muitas vezes as estruturas são muito pesadas e não se conseguem adaptar às necessidades atuais com a rapidez que é preciso. Enquanto as entidades privadas conseguem fazer mais se quiserem, as públicas não têm essa capacidade. A vantagem da função pública está relacionada com a estabilidade profissional. Ou seja, há vantagens e desvantagens nos dois lados. Às vezes também tem a ver com as características das pessoas. Há pessoas que gostam mais de desafios e há outras que gostam mais de estabilidade e previsibilidade. Temos também de tentar adaptar as funções e os locais às características das pessoas. Mas, sim, acho que tem havido aqui um interesse maior. O relatório anual que nós lançámos este ano mostra que os indicadores de burnout são muitos: quase 80% tem um sintoma de burnout e cerca de 60% tem três sintomas de burnout. Depois, o assédio laboral: cerca de 19% refere que há assédio laboral, e nos profissionais de saúde são 25%. As próprias entidades muitas vezes não percebem que isso é um problema interno, porque temos uma cultura muito permissiva, e não pode ser.
Outra coisa interessante é a questão das gerações. Nós fizemos o estudo das gerações este ano, comparámos as quatro gerações que estão no trabalho agora. Então, verificámos que as gerações mais novas têm uma atitude face ao trabalho diferente, ou seja, são um bocadinho mais desprendidas. Por outro lado, valorizam mais o tal equilíbrio entre a vida pessoal e a vida profissional e conseguem ser mais assertivas em relação à sua vida profissional. Realmente, se as pessoas não colocam limites, há sempre coisas para fazer, há sempre trabalho, há sempre urgências. A minha geração vê o trabalho de outra maneira, é como se o trabalho fosse algo mesmo muito importante para nós. O estudo diz que a geração X é aquela que está mais afetada a nível da saúde mental porque, realmente, há um maior envolvimento, há uma maior entrega. E também há uma grande relação entre o burnout e o engagement. Engagement sem limites leva a burnout. Portanto, nós devemos estar envolvidos qb (não pode ser sempre e muito). Há profissionais que não conseguem ver os seus limites ou que as suas lideranças não veem os seus limites, e isso leva ao burnout.
Outra coisa interessante que os resultados nos dizem tem a ver com a relação com as lideranças, que normalmente afeta muito a saúde mental, para o bom e para o mau. E as pessoas dizem também que é importante ter atividades informais de contacto, porque as relações interpessoais no trabalho são muito importantes e podem ser um fator protetor. Se eu tiver boas relações com os meus colegas, isso vai-me ajudar a lidar com as coisas. Devia haver uma promoção de um melhor relacionamento nas organizações, para as pessoas se relacionarem de forma positiva e serem um suporte umas das outras. Mais uma vez, uma mensagem para os empregadores: isso iria ajudar as pessoas a trabalharem melhor e a resolverem melhor as coisas. O que eu aprendi na área da gestão – eu tirei o doutoramento em gestão – foi que temos sempre que ver as coisas sob várias perspetivas. Como psicóloga, eu via muito o lado da pessoa. Como gestora, também tenho que ver do lado da organização. Hoje acho que consigo “casar” as duas coisas. As organizações privadas, por exemplo, têm que dar lucro, mas isso tem que coexistir com a saúde mental do trabalhador. Portanto, é esta tentativa de articular estas duas coisas que eu tenho andado a tentar desenvolver.
HN – Gostaria de deixar uma mensagem final?
TG – A mensagem principal é mesmo a pertinência do estudo, por causa do peso que o turismo tem para Portugal e para PIB do país. Por outro lado, muitas vezes estas profissões envolvem pessoas mais vulneráveis – mulheres, pessoas migrantes, pessoas com um nível educacional mais baixo –, e estas pessoas acabam por estar triplamente desfavorecidas, porque elas próprias têm menos recursos. Portanto, há uma grande necessidade de as apoiar. Além disso, sentimos que as coisas não são transparentes, não estão estruturadas, e isto é um comboio que não vai parar, ou seja, vamos continuar a ter muito turismo e precisamos urgentemente que esta situação seja clarificada, organizada, e que inclua todo este diálogo social, ou seja, que inclua toda a gente – as necessidades das empresas, governamentais, dos trabalhadores e dos turistas. Que realmente tente integrar estas várias necessidades respeitando cada uma das partes. É esse o grande contributo. E, depois, a questão do benchmarking do índice do bem-estar dos trabalhadores, que vai ser interessante e vai promover a competitividade positiva entre as empresas.
Entrevista de Rita Antunes
Aceda a mais conteúdos da revista #23 aqui.
0 Comments