Com stress pós-traumático, mães de crianças que tiveram cancro reclamam ajuda

12 de Fevereiro 2023

A sociedade espera que celebrem missas de ação de graças, mas Flávia e Paula, mães de crianças que tiveram cancro, só querem apoio, compreensão e tempo, porque sofrem de stress pós-traumático e não tiveram vergonha de pedir ajuda.

Flávia Silva entrou no Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto em setembro de 2019 com a filha de 20 meses, e não se lembra de chorar durante os longos internamentos e tratamentos.

“Se me dissessem que tinha de ir para o coliseu lutar com um leão, eu estava lá sem medo nenhum. Temos a adrenalina no máximo”, conta à agência Lusa.

Cerca de três anos depois do diagnóstico – uma leucemia linfoblástica de tipo B – já em casa, em Braga, e enquanto a Teresinha, que entrou em fase de vigilância da doença, brincava na sala, chorou compulsivamente ao ver o pôr-do-sol, um episódio que teve de desconstruir com ajuda médica.

“Aquele pôr-do-sol trouxe-me um sentimento de solidão que não soube explicar. Soube mais tarde que me remeteu para os tempos do IPO quando, ao fim da tarde, o meu marido, a minha mãe, a minha irmã, iam embora. Mais um dia passado. A noite era só minha”, conta.

Mãe de uma menina agora com 5 anos, Flávia sofre de stress pós-traumático e não tem vergonha de o assumir. Mas sabe que nem todos os pais o fazem.

“A sociedade espera que façamos grandes jantaradas. Perguntam-nos se já voltamos ao trabalho ou para quando um segundo filho. Mas ativei um medo para a recidiva que me retirou a funcionalidade. A medicação ajuda, mas já passei cinco dias sem comer e sem comunicar com o meu marido. Demonstrei uma raiva fora do comum. Foi quando a minha psicóloga achou que estava na hora de subir de nível e passei para a psiquiatria”, descreve.

Do latim ‘recidivus’, uma recidiva significa, na terminologia ligada à medicina, o reaparecimento dos sintomas de uma doença que já tinha sido curada, uma recaída.

Já “stress pós-traumático” corresponde a uma perturbação mental que se pode desenvolver em resposta à exposição a um evento traumático, como os acidentes de viação, guerra, agressão sexual ou outro tipo de ameaças.

A coordenadora da Unidade de Psico-Oncologia do Núcleo Regional do Norte da Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC), Mónick Leal, junta as duas expressões numa só: “medo da recorrência”.

“Cria níveis de ansiedade muito elevados sempre que as pessoas têm de fazer um exame ou ir à consulta para ver como estão os exames. 99% das pessoas que passaram por situações traumáticas têm isto. E pais com filhos que tiveram cancro não são exceção”, refere.

Em entrevista à Lusa nas vésperas do Dia Internacional das Crianças com Cancro que se assinala quarta-feira, a psicóloga clínica explica que “a sensação de que a doença pode voltar a qualquer momento” faz com que as famílias “nunca se sintam seguras”.

“Qualquer tipo de sinal, dor, mancha, febre espoleta um alerta”, resume.

É por isto que Flávia pede, às vezes, ao marido para dar banho à filha. “Dou por mim a olhar para as pernas da Teresinha e vejo negras. Dou por mim a apalpar-lhe os gânglios. É uma fixação”, contou à Lusa.

Esta é uma sensação que Paula Vicente reconhece. A mãe da Leonor, agora com 10 anos, descobriu que a filha tinha uma leucemia linfoblástica aguda porque “teimou” que a menina apresentava tosse persistente e andava pálida.

“A Leonor tinha 6 anos. Descobrimos por uma situação corriqueira. Não havia nenhum indício que nos levasse a pensar em alguma coisa daquela natureza”, diz.

A primeira sirene soou. Seguiu-se um ano de tratamentos intensivos e um ano de manutenção e chegou a fase de vigilância que leva Leonor ao IPO de dois em dois meses.

Percorre os mais de 200 quilómetros entre Bragança e o Porto “com o coração nas mãos”. “E se tiver voltado?” – é a pergunta que soa sempre na cabeça de Paula, uma “sirene” que não quer que a filha ouça.

“Mas as crianças percebem tudo. Durante a doença, os pais e as crianças estão em modo de luta. Normalmente é quando tudo passa que demonstram mais dificuldades em lidar com os sentimentos e angústias”, analisa Mónick Leal.

A psicóloga reconhece esta e outras situações como “os desafios que as pessoas enfrentam depois dos tratamentos, no regresso à chamada vida normal”.

“Da mesma forma que as pessoas tiveram de se adaptar à doença e às suas novas rotinas e aos seus novos papéis, depois têm de se readaptar”, diz, lembrando que a LPCC tem consultas de psico-oncologia dedicadas a doentes e a familiares, mas “não quer nem se deve substituir ao Estado” onde a lacuna nesta área é “muito grande”.

Paula Vicente recorreu a ajuda psiquiátrica porque agora, quando a Leonor tem febre, as palavras “gripe” ou “amigdalite” não são as primeiras que lhe vêm à cabeça. Qualquer espirro é “um susto”.

“Tudo me faz ter medo. É difícil lançá-la ao mundo agora. É um querer muito dividido. É um querer que ela viva porque perdeu anos de infância, um querer que recupere tudo rápido e abrace o mundo de uma só vez, mas, ao mesmo tempo, há um medo que nos tolhe os movimentos e pensamos que é melhor fechá-la em casa”, conta.

Não o fez. Depois de um período de aulas com uma professora no domicílio ou de aulas ‘online’, a Leonor foi para a escola.

“E foi a melhor coisa que fiz. E eu voltei ao trabalho, mas o desmame é muito difícil e demorado. Demorei a voltar a ver-me em minha casa. A minha casa era a da Acreditar [no Porto, onde viveu durante um ano e onde passou o Natal de 2018] e o IPO”, acrescenta.

LUSA/HN

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