Coordenador defende confinamento em Timor-Leste para evitar colapso do sistema de saúde

21 de Agosto 2021

Timor-Leste deveria fazer confinamento em todo o país, para reduzir a transmissão da variante Delta da covid-19 e evitar o “risco real” do colapso do sistema de saúde, disse hoje um dos coordenadores da resposta à pandemia.

“As medidas de saúde publica que estão a ser implementadas não são suficientes. É preciso uma decisão de confinamento geral obrigatório nas próximas semanas, e seria bom em todo o país, para dar tempo ao pessoal de saúde a trabalhar”, disse Rui Araújo, um dos coordenadores do Centro Integrado de Gestão de Crise (CIGC), em entrevista à Lusa.

“Se todos os [casos] positivos fossem ligeiros, sem necessidade de hospitalização, ainda se podia tolerar. Mas se o número continuar a aumentar exponencialmente, nas próximas semanas, creio que o sistema vai ao colapso. É um risco real”, afirmou.

Rui Araújo, ex-primeiro-ministro e ex-ministro da Saúde, admite que o confinamento é “uma decisão difícil”, quando se tenta equilibrar a questão da recuperação socioeconómica do país e eventuais restrições em termos de medidas de saúde pública.

“Mas são decisões que devem ser feitas. Não são fáceis, mas o Governo vai ter que tomar uma decisão. Senão, vamos ver o sistema a implodir e podemos ir para situações como na Índia e Indonésia, por não haver facilidades suficientes”, disse.

“Há um risco real do colapso do sistema. É preciso tomar medidas para que a transmissão cesse, pelo menos parcialmente, dando tempo para a recuperação dos profissionais de saúde”, acrescentou.

O aumento de casos afetou também os profissionais de saúde, com o centro de saúde de Manufahi “praticamente paralisado”, depois de, entre 41 casos detetados, 32 serem de profissionais do setor, incluindo oito médicos.

Dois dos três únicos pneumologistas do país estão infetados, deixando assim apenas um profissional para atender aos centros de isolamento de Vera Cruz e de Lahane, onde o número de hospitalizados e de casos graves continua a aumentar.

Em Díli há clínicas privadas já fechadas e no Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV) há profissionais infetados e isolados, o que “está a afetar o funcionamento dos serviços”.

Camas para doentes moderados e graves em Vera Cruz e Lahane estão “a ficar esgotadas” e “basta 10 ou 20 mais casos diários de hospitalização para ter um problema grave”, notou.

Mesmo a questão do fornecimento de oxigénio, que ainda não chegou à fase de alarme, pode vir a ser um problema, já que o país “não tem capacidade de produção suficiente” se houver um aumento exponencial de casos graves, defendeu.

Uma das recomendações feitas pelo Centro Integrado de Gestão de Crise (CIGC) ao Governo há mais de duas semanas foi a de proibir grandes aglomerações de qualquer tipo, indicação que o executivo não implementou.

Daí que nas últimas semanas se tenham multiplicado aglomerações em festas, atividades políticas, religiosas e sociais, tanto em Díli como noutros pontos do país, o que contrasta com o facto de o Ministério da Educação ter decidido suspender o ensino presencial.

Os comentários de Rui Araújo ecoam apelos de outros profissionais de saúde e surgem numa altura em que Timor-Leste está a viver recordes de infeções de covid-19, hospitalizações e óbitos.

O coordenador alertou ainda que “não se está a testar suficientemente”, com os testes focados especialmente em casos sintomáticos, com uma modelagem feita em julho a antecipar que, sem restrições adicionais e com a variante Delta, “se pode chegar aos 4.000 casos diários, só em Díli”.

“O pico poderá ser na primeira ou segunda semana de setembro. Em termos do número de casos, não estamos a ver na realidade o que foi previsto, mas também não estamos a testar suficientemente as pessoas. Se hoje pudéssemos testar 5.000, com a taxa de infetividade de 30%, detetaríamos 1.500 casos”, apontou.

A entrada da variante Delta no país, ao que tudo indica devido a travessias irregulares da fronteira – esta semana a Indonésia deportou mais de 350 timorenses ilegalmente em Timor Ocidental –, colocou o país em nova fase de risco.

“Esta é uma das situações de maior risco, para a qual temos vindo a alertar desde meados de julho, especialmente pela transmissão clandestina da Delta pela fronteira”, disse Rui Araújo.

“Infelizmente a vigilância da fronteira não foi suficiente para prevenir a entrada da variante Delta, cujos primeiros casos foram detetados em Ermera. E a investigação epidemiológica comprova que a variante entrou através de clandestinos que faziam as atividades comerciais e outras na fronteira”, enfatizou.

Uma situação agravada por centenas de membros de grupos de artes marciais que atravessaram ilegalmente a fronteira para ir a cerimónias de graduação em Timor Ocidental, onde a Delta é dominante, e pelo aumento de grandes aglomerações em Díli e noutros locais.

Oficialmente, os primeiros casos daquela variante só foram confirmados em junho – a sequenciação genómica tem de ser feita na Austrália, o que atrasou as análises -, na altura ainda em pacientes em isolamento.

Quando os casos dispararam em Ermera, a região com mais casos ativos depois de Díli, as análises confirmaram que a Delta era responsável pela maioria das infeções, tendo desde o início de agosto havido novo aumento significativo em Díli.

“Creio que a presença da variante delta na comunidade já é dominante, vendo o número de infetados, um comportamento diferente da variante inicial, mais transmissibilidade, mais sintomáticos e mais casos afetando as idades inferiores a 20 anos, incluindo crianças abaixo de 5 anos e também pessoas com vacinação completa”, frisou.

“Não podemos confirmar que todos os casos pertencem a essa variante, mas do ponto de vista clínico o comportamento demonstra que a variante Delta é dominante”, explicou.

Ainda que em Díli as taxas de vacinação tenham progredido significativamente, com mais de 70% da população com idade superior a 18 anos a ter recebido a primeira dose e mais de 50% com a vacinação completa, o mesmo não ocorre no resto do país.

Rui Araújo concorda que parece haver, mesmo em Díli, alguma “estagnação a nível nacional” no que toca à vacinação, o que contribui para a propagação do vírus.

Para acelerar a vacinação é preciso ter mais gente no terreno e melhores soluções operacionais, mas também “mais vozes de credibilidade a falar ao público, a dizer que é altura de todos se vacinarem”, defendeu.

“E isso implica unidade na liderança do país. Com uma liderança assim divida, e já alertei para isso no ano passado, não vamos a lado nenhum”, acrescentou.

“Temos de envolver líderes comunitários, garantir que a campanha de logística é bem gerida. Mas há muita relutância na questão das vacinas e isso vem também do lado da dúvida que continua sobre mensagens contraditórias e dispersas dos líderes nacionais”, enfatizou.

LUSA/HN

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Estudante do 2º ano do Curso de Especialização em Administração Hospitalar da ENSP NOVA; Vogal do Empreendedorismo e Parcerias da Associação de Estudantes da ENSP NOVA (AEENSP-NOVA); Mestre em Enfermagem Médico-cirúrgica; Enfermeiro especialista em Enfermagem Perioperatória na ULSEDV.

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