“Efeitos colaterais da pandemia vão arrastar-se durante muitos anos”

6 de Setembro 2021

José Ferreira Santos, Diretor clínico do Hospital da Luz Setúbal

“A longo prazo, é difícil fazermos estimativas”, diz o cardiologista José Ferreira Santos, diretor clínico do Hospital da Luz Setúbal. “Mas obviamente que se as pessoas perderam hábitos saudáveis, aumentaram de peso e fazem menos exercício físico, isso vai ter consequências”.

HealthNews (HN) – A hipertensão arterial, e também a diabetes, a dislipidémia, o tabaco e o excesso de peso são os principais fatores de risco para a doença cardiovascular. Existem evidências sobre um eventual aumento de doenças cardiovasculares, como o enfarte agudo do miocárdio ou o AVC, resultantes de um menor controlo de todos esses fatores de risco durante a pandemia?

José Ferreira Santos (JFS) – Na minha opinião, esta pandemia tem três níveis de repercussão do ponto de vista da doença cardiovascular. O efeito mais imediato está relacionado com as sequelas que a infeção pelo SARS-CoV-2 pode deixar, em termos cardiovasculares, em particular nos casos mais graves e com necessidade de internamento.

Num segundo nível e devido ao confinamento das pessoas em suas casas e o receio de ir aos hospitais, verificou-se um atraso na procura de cuidados quer por enfarte e AVC, quer por outras doenças mais ligeiras. Este efeito foi reportado em vários países do mundo. Em Portugal, sabemos que durante esse período houve, por exemplo, uma redução muito significativa de admissões pela via verde coronária e de angioplastias primárias. Existem, aliás, alguns artigos publicados no nosso país que mostram uma diminuição global na admissão de doentes por enfarte, mas por outro lado, um aumento da gravidade dos doentes internados.

Observou-se que os doentes chegavam mais tarde, com mais complicações, maior gravidade e, consequentemente, maior risco de morte.

Ainda relacionada com a segunda repercussão da Covid19, esteve a dificuldade de acesso às consultas programadas. No ano passado houve menos 1 milhão de consultas no Serviço Nacional de Saúde. Em geral, houve também uma redução muito significativa de exames de rastreio e de diagnóstico, não só porque os doentes tinham receio de se dirigirem aos serviços de saúde mas também porque muitos deles estavam fechados.

Nos Estados Unidos, por exemplo, dados referentes a 2020 assinalam que nos Cuidados de Saúde Primários se verificou uma redução da avaliação da hipertensão e do colesterol na ordem dos 50%. Havendo menos rastreio, obviamente que vai haver mais fatores de risco não controlados.

Por outro lado, durante a pandemia as pessoas fizeram menos exercício e isso também vai ter repercussões. Dados recolhidos de milhares de utilizadores dos aplicativos do “Fitbit”, um monitor de atividade física, mostram uma redução de entre 30 a 40% do número de passos.

Os registos e avaliações apontam também para um aumento do peso. Em Portugal, alguns estudos de pequenas dimensões assinalam um aumento de 5% da obesidade. Estudos norte-americanos referem um aumento médio, nalguns doentes, de mais de seis quilos. Estamos a falar de números muito significativos. Sabemos que a inatividade física e a obesidade têm um grande impacto a nível cardiovascular.

Tudo isto nos leva à terceira fase: as pessoas ficaram com mais peso, fizeram menos exercício físico, adiaram a procura de cuidados, não se diagnosticou a hipertensão arterial e outros fatores de risco. Muitas vezes, o efeito não é imediato mas vai repercutir-se no médio prazo.

Por último, temos a questão social. As pessoas estão mais isoladas, há menos convívio social (essencial para combater a ansiedade, a depressão e o stress) e, com o desemprego, têm mais dificuldade para adquirir a medicação.

Esta parte terciária da pandemia também está muito relacionada com o aumento do risco cardiovascular. Sabemos que quanto menor o estrato social e maiores as dificuldades económicas, maior o risco cardiovascular.

Penso que estas três “ondas” de efeitos colaterais da pandemia se vão arrastar durante os próximos anos.

HN –  Perdeu-se a vantagem ganha em anos anteriores na prevenção e diagnóstico precoce das doenças cardiovasculares?

JFS – Os dados divulgados pela Associação Portuguesa de Intervenção Cardiovascular (APIC) relativos a 2020, mostram um aumento de 2,5% na taxa de enfarte. Apesar da redução inicial no número de enfartes tratados nos hospitais, os últimos meses do ano de 2020 registaram um incremento nos números.

A longo prazo, é difícil fazermos estimativas, mas tudo indica que os indicadores das doenças cardiovasculares vão piorar! Acreditando no agravamento dos estilos de vida e no menor rastreio e controle dos fatores de risco, vamos perder alguns dos ganhos que vínhamos conseguindo em termos de prevenção.

HN – Qual é o papel das videoconsultas na gestão das doenças crónicas e como poderão ajudar no acompanhamento e monitorização dos doentes, nomeadamente de risco cardiovascular?

JFS – Em 2014, o Hospital da Luz Setúbal iniciou um projeto de videoconsultas programadas, incluído num programa mais amplo, denominado “Centro Clínico Digital”. O Hospital da Luz Setúbal integrou o projeto-piloto, em conjunto com Lisboa, na área da cardiologia. Ou seja, era algo que já vínhamos fazendo, de uma forma regular, quando começou a pandemia.

Fazíamo-lo para doenças crónicas na área cardiovascular que estivessem estabilizadas, com pessoas que precisassem de visitas de seguimento que podiam ser substituídas por videoconsultas. Temos tudo bem balizado e sabemos quais são os doentes elegíveis para esse tipo de consultas.

Quando se instalou a pandemia, o número de videoconsultas aumentou de uma forma exponencial. Os números mantiveram-se elevados e em 2021, cerca de 10% das minhas consultas de cardiologia são feitas nesse formato.

A taxa de adesão dos doentes é muito elevada: mais de 90% dos doentes que experimentam, aderem e repetem. Mas não são exclusivas, ou seja, mantemos a recomendação que o doente tenha, pelo menos uma vez por ano, uma visita presencial com o seu médico. Essencialmente, para fazer o exame físico e para manter um relacionamento presencial que consideramos muito importante. Do meu ponto de vista, a videoconsulta será sempre um complemento.

HN – Então, a utilização de ferramentas digitais pode até reforçar a ligação entre o médico e o doente?

JFS – O objetivo das videoconsultas foi sempre facilitar as consultas intercalares. Todos nós sabemos que na gestão da doença crónica, quer seja cardiovascular ou não, depois de atingida a estabilidade, muitas das visitas acabam por ser quase de validação de que tudo está a correr bem. A ideia é substituir essas visitas de rotina por videoconsultas. Acaba por ser uma solução mais vantajosa para o doente, que não tem de se deslocar ao hospital, e permite aos serviços de saúde uma gestão mais eficiente e rápida da sala de espera e do processo de admissão dos doentes.

HN – É de prever um aumento da utilização destas ferramentas digitais nos próximos tempos, a par das consultas presenciais?

JFS – Penso que as videoconsultas se vão manter e continuar a evoluir, como já estava a acontecer. Os doentes relacionam-se com os serviços de outras áreas de forma digital e a Saúde não é exceção. Contudo, o “boom” provocado pela pandemia poderá não se repetir.

Aliás, penso que uma das coisas que temos de aprender com a pandemia é que este processo não pode ser feito em cima do joelho. O médico tem de ter acesso ao processo clínico e aos dados do doente, tem de conhecer o paciente para saber qual é o plano e o que é esperado acontecer e, por outro lado, todo o processo tem de ser confidencial. É preciso que haja um acesso seguro por parte do médico e do doente, informação encriptada para não dar azo a violações de confidencialidade e uma validação clínica dos doentes elegíveis.

Uma videoconsulta não é o mesmo que uma consulta telefónica ou “teleconsulta”! Claro que sempre é melhor ter uma consulta telefónica do que não ter nada, como aconteceu em muitas instituições de saúde durante a pandemia, mas não é essa a solução digital que necessitamos.

Não tenho qualquer dúvida de que, na doença crónica, o seguimento do doente por videoconsulta faz todo o sentido, facilita e fortalece a relação médico-doente.

Entrevista de Adelaide Oliveira

 

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