A pandemia pôs o planeta em alerta perante um vírus desconhecido que causa uma doença respiratória que se propaga rapidamente e mata, e seguindo os passos que ecoavam um pouco por todo o mundo, cientistas e empresas portuguesas interromperam o que tinham em mãos e entregaram-se a outras tarefas: fizeram testes de diagnóstico, zaragatoas, ventiladores, estudos sobre o novo coronavírus e a imunidade e desdobraram-se em esclarecimentos nas rádios, televisões e jornais.
Em contraciclo, a astroquímica Clara Sousa-Silva, a trabalhar nos Estados Unidos, teve de largar, por um dia, a investigação para dar entrevistas, algo a que não estava habituada, porque fez parte de uma equipa internacional que descobriu que as nuvens de Vénus têm fosfina, um gás que na Terra é produzido naturalmente por bactérias, que são organismos vivos.
A descoberta intrigante foi anunciada em setembro e despertou o interesse da imprensa nacional. A possível confirmação da existência de vida na atmosfera de Vénus, mais densa e quente do que a da Terra, seria um “enorme avanço em astrobiologia”, de acordo com o astrónomo Leonardo Testi, que não participou na investigação, mas que gere na Europa as operações do radiotelescópio ALMA, usado nas observações.
Clara Sousa-Silva, que trabalha no Departamento de Ciências da Terra, Atmosféricas e Planetárias do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, não teve tempo para, no dia do anúncio da descoberta, falar à Lusa, mas, citada em comunicado pelo Observatório Europeu do Sul, que opera o ALMA, disse que “descobrir fosfina em Vénus foi um verdadeiro bónus”.
Mais familiarizada com a imprensa, a astrobióloga Zita Martins, que leciona no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, foi mais uma vez notícia, desta feita em janeiro, quando ficou a saber-se que vai participar numa missão da Agência Espacial Europeia (ESA) que irá procurar intercetar pela primeira vez um cometa primitivo, isto é, inalterado pela radiação do Sol, para obter respostas sobre a origem da vida na Terra.
Para a astrobióloga, intercetar um cometa primitivo é como entrar numa “máquina do tempo”, uma vez que possibilitará desvendar quais “as moléculas orgânicas” disponíveis no início da formação do Sistema Solar e, assim, dar pistas mais concretas sobre a origem da vida na Terra.
Na missão “Comet Interceptor”, que teve o seu lançamento reagendado para 2029, Zita Martins é a única cientista portuguesa que integra a equipa internacional que vai analisar os dados recolhidos.
Em 2020, o espaço ganhou também dois novos satélites com tecnologia de empresas nacionais.
O primeiro deles, o satélite europeu Solar Obiter, foi lançado em 10 de fevereiro e vai permitir obter as primeiras imagens dos polos do Sol, considerados peça-chave para a compreensão da atividade e dos ciclos solares.
Na construção do engenho estiveram envolvidas a Critical Software, que concebeu vários sistemas de ‘software’, a Active Space Technologies, que fabricou componentes em titânio para o braço de suporte e orientação da antena de comunicação do satélite com a Terra, e a Deimos Engenharia, que trabalhou na definição e execução da estratégia para testar os sistemas de voo.
Com sede em Coimbra, a empresa Critical Software voltaria a ser mencionada pela sua participação no satélite “Sentinel-6”, do programa europeu de observação da Terra Copernicus.
O satélite, que irá medir as mudanças do nível do mar e fornecer dados para a oceanografia e meteorologia, foi enviado para o espaço em 21 de novembro, tendo a Critical Software sido responsável por diversos componentes de ‘software’ do aparelho.
Ainda no âmbito do programa Copernicus foram contratualizadas este ano pela ESA seis novas missões espaciais de observação da Terra com cinco empresas portuguesas, incluindo a Active Space Technologies, a Critical Software e a Deimos.
As duas últimas companhias vão trabalhar para a ESA numa outra missão, aquela que será a primeira para remoção de lixo espacial da órbita da Terra, com lançamento planeado para 2025.
Um ano antes, em 2024, está previsto o envio da sonda espacial Hera, integrada na primeira missão europeia dedicada à defesa planetária (contra impactos de asteroides) e que conta igualmente com tecnologia ‘made in Portugal’, das empresas GMV, Efacec e Synopsis Planet.
Em 2020 ficou também conhecida a participação portuguesa na fase preparatória do projeto do Telescópio Solar Europeu, que deverá estar operacional em 2027, nas ilhas espanholas das Canárias, de onde vai observar a atividade do Sol e medir o seu impacto na Terra.
O novo telescópio será construído e operado pela Associação Europeia de Telescópios Solares, que agrega várias instituições científicas, incluindo a Universidade de Coimbra.
Ao maior telescópio ótico do mundo, o ELT, que está a ser construído no Chile e que deverá começar a funcionar em 2025, estão ligados cientistas do Centro de Astrofísica e Gravitação/Centra, um facto que a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, associada da instituição de investigação, quis realçar este ano.
Os investigadores do Centra participam na conceção de um dos instrumentos do telescópio e na construção da sua estrutura mecânica de suporte.
O ELT, que conta ainda com o contributo português de cientistas do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço e das empresas Critical Software e ISQ, permitirá estudar galáxias distantes, novas estrelas em órbitas mais próximas do buraco negro ‘supermassivo’ do centro da Via Láctea e planetas fora do Sistema Solar com tamanho semelhante à Terra.
E foi precisamente em redor do buraco negro ‘supermassivo’ no centro da Via Láctea, o Sagitário A, que uma equipa científica internacional, com portugueses pelo meio, verificou pela primeira vez que uma estrela, a S2, se movimenta como o previsto na Teoria da Relatividade Geral de Albert Einstein, de 1915.
O feito foi revelado em abril e implicou um longo trabalho de medições precisas da órbita da estrela durante cerca de 30 anos.
A equipa portuguesa, da qual fizeram parte os investigadores do Centra Paulo Garcia, Vítor Cardoso e António Amorim, participou nas mais de 330 medições da posição da estrela, que completa uma órbita na proximidade de Sagitário A ao fim de 16 anos, mas também no desenho e construção de um componente de um instrumento do telescópio VLT, no Chile, com o qual foi possível obter imagens do ambiente próximo do buraco negro.
Para Paulo Garcia, “por muito espetacular que a Relatividade Geral seja, a maioria dos físicos acredita que esta não é a última teoria da gravidade”.
O mesmo pensam os cientistas em relação à pandemia da covid-19, que mudou o mundo em 2020 e não será a última pandemia a atingir a Terra.
LUSA/HN
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