“Como é que os jovens habitam o lugar, qual o espaço do sonho na vida da juventude insular?” Foram estas as questões que levaram Cláudia Varejão a regressar a São Miguel, depois de, em 2016, ter estado na ilha em residência artística, no Pico do Refúgio.
Aquele espaço, situado em Rabo de Peixe, proporcionou à realizadora “uma primeira entrada na ilha por uma vila muito particular, com características muito singulares, muito difíceis, socialmente, economicamente, a vários níveis”.
“É um filme que já tinha na gaveta há alguns anos, eventualmente desde que fui jovem”, mas que, “por outro lado, começou a ser escrito aqui [em São Miguel], nesse período de residência e nesse primeiro contacto com os jovens da ilha”, conta a cineasta à agência Lusa.
O projeto “convoca muito o real e a ficção”, afirma.
“Foi escrito a partir da experiência de uma série de jovens que conheci aqui na ilha, da minha própria experiência de quando fui jovem, e que ainda tenho em mim – trazemos todas a idades dentro de nós”, sublinha.
“Lobo e Cão” é um filme universal, que aborda “todas as questões humanas, com a sua maior amplitude, e que têm um pulsar muito visível e muito forte na juventude”, diz à Lusa.
“Desde logo”, prossegue, “a sexualidade, o desejo de transgredir – e transgredir, seja socialmente, como o próprio território, portanto, atravessar a linha do horizonte –, as questões emocionais e afetivas, as questões profissionais, as questões familiares, as questões morais. Todas as questões que são integrantes do ser humano, mas que, na juventude, são questionadas, permanentemente, e a vários níveis”.
Mas ganha também uma outra dimensão, por mostrar “como é que é ser jovem num território cercado pelo mar e, nestes contextos em particular, contextos com bastantes dificuldades económicas e sociais, a ideia de atingir outros lugares, outros conhecimentos, para concretizar o sonho, está mais comprometida”.
“O filme só deixa de ser escrito quando vai para a rodagem”, explica Cláudia Varejão, acrescentando que, “à medida que os ‘castings’ vão sendo fechados, as pessoas também trazem mais histórias. A própria estrutura do filme tem de se adaptar à vida das pessoas”.
Como já tem vindo a fazer ao longo da sua carreira, para este projeto, Cláudia Varejão parte, também, da premissa de “trabalhar com não-atores, portanto, com pessoas da ilha”.
“O que é fabuloso de trabalhar com não-atores é que, como não há uma ideia pré-definida do que é que é fazer um filme, seja um filme escrito de uma forma mais estanque, seja um filme mais aberto, é sempre uma experiência espontânea”, explica.
Para escolher os intérpretes, foram feitas “duas fases de ‘casting’, com uma participação massiva”, sendo que, “na primeira leva, foram quase 800 candidaturas”, para um filme que tem cerca de 20 papéis, adianta a realizadora à Lusa.
Até lá, “o processo está aberto”, e o guião vai sendo trabalhado com uma “parceira de reflexão”, a escritora Leda Cartum, que vive em São Paulo, no Brasil.
A rodagem, “se a pandemia assim o permitir”, deve acontecer no verão.
No processo de filmagens estarão envolvidas cerca de 50 pessoas.
“É uma produção grande, mas que tenta respeitar a intimidade da ilha, a realidade da ilha, o contexto insular de ter uma dimensão mais humana, também, na própria estrutura da ilha. Sobretudo porque também estamos a trabalhar com pessoas que não são profissionais do cinema e há uma intimidade com a qual eu costumo trabalhar, que só é possível se formos menos”, acrescenta.
Mesmo em cenário de pandemia de covid-19, “a estrutura vai-se manter a mesma, com cuidados acrescidos. O filme propõe-se filmar numa festa do Espírito Santo. Provavelmente, não será uma festa do Espírito Santo que acontece, será feito por nós, com uma série de pessoas testadas… Estas cenas que envolveriam mais pessoas, possivelmente, vão ter de ser repensadas em termos formais”, adianta a realizadora à Lusa, tendo em conta o cenário da pandemia.
Varejão concede que “nada precisa de ser feito já”, mas insiste em avançar com este projeto o quanto antes, porque “o setor cultural não pode parar”.
“Já não estamos a falar só da necessidade de produzir, estamos a falar da necessidade de manter as pessoas com trabalho, com honorários, com uma vida estável, porque já ultrapassámos essa linha vermelha. Por um lado, vamos continuar a dar emprego, nomeadamente em território micaelense, porque o filme propõe-se que grande medida do dinheiro investido fica na ilha. Também para o próprio território é um investimento que não convém recuar”, destaca.
Por outro lado, “o filme toca em questões sobre identidade de género, que me parecem, também, muito urgentes”, afirma, frisando que não se deve “adiar representar aquilo que, tendencialmente e historicamente, tem sido invisível, como a identidade de género, a orientação sexual, as comunidades LGBTQI, que, num contexto mais pequeno, ainda são mais frágeis”.
Cláudia Varejão nasceu no Porto e estudou cinema no Programa de Criatividade e Criação Artística da Fundação Calouste Gulbenkian, em parceria com a German Film und Fernsehakademie Berlin, na Academia Internacional de Cinema de São Paulo Brasil, e fotografia no Ar.Co – Centro de Arte e Comunicação Visual, em Lisboa.
É autora da ‘curta’ documental “Falta-me” e da triologia de ‘curtas’ de ficção “Fim-de-semana”, “Um dia Frio” e “Luz da Manhã”.
“No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos”, com base na atividade da Companhia Nacional de Bailado, foi a sua estreia em longas-metragens.
“Amor Fati”, o seu mais recente filme, de 2020, que chegou às salas de cinema em novembro, foi distinguido como melhor longa-metragem nos prémios Basel Film e Media Art, atribuídos pelo departamento de Cultura do cantão da Basileia.
A anterior longa-metragem, “Ama-san”, um documentário que regista a prática milenar japonesa de pesca por mergulho em apneia, só executada por mulheres, foi exibido em diversos certames e mostras internacionais, e premiado em festivais como o Dokufest, Karlovy Vary e DocLisboa.
“Lobo e Cão”, a nova longa-metragem da realizadora, com a Terratreme Filmes, é um projeto apoiado pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual.
LUSA/HN
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