História de Portugal científico desconhecido desmonta ideias feitas sobre identidade nacional

27 de Junho 2021

 Seis séculos de ciência em quatro volumes editados esta semana ilustram uma história desconhecida de Portugal marcada por avanços na ciência, tecnologia e medicina, um projeto que desmonta ideias feitas sobre a construção da identidade portuguesa.

Uma das coordenadoras da coleção “Ciência, Tecnologia e Medicina na Construção de Portugal”, editada esta semana, Maria Paula Diogo frisou que um dos motores que levou à criação da coleção foi iluminar “a plêiade enorme” de cientistas, engenheiros e médicos e acrescentar as suas áreas “às mais tradicionais: a económica, política, social, institucional” porque o domínio científico “não é um reduto, um gueto, é algo que faz parte do território da História”.

“Quisemos contrariar a ideia que continua, por incrível que pareça, renitente em desaparecer, que é a ideia de que não há ciência, tecnologia e medicina em Portugal. Porque as pessoas acham que só há se houver Einstein, Darwin, Newton, Pasteur, o que seja. A ciência não se faz só com grandes luminárias, nunca se fez”, salientou a investigadora Ana Simões, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que com Maria Paula Diogo – Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova – fez a coordenação geral da coleção, que conta com artigos de mais de 80 autores.

As “luminárias” como o matemático Pedro Nunes ou os médicos Garcia de Orta e Egas Moniz – o único português galardoado com um prémio Nobel da área científica – são incontornáveis, mas as coordenadoras salientam que “há muitos participantes no empreendimento científico para além delas”.

Para Maria Paula Diogo e Ana Simões, um “personagem fascinante” que se tornou praticamente “invisível” na História apesar da sua influência é o abade José Correia da Serra, um naturalista que viveu entre 1750 e 1823 e que ilustra o “risco que os historiadores correm de pensar que, por se saber pouco sobre ele, não fez nada de jeito”.

Na verdade, Correia da Serra é “um naturalista considerado, ao nível de um [Alexander von] Humboldt, de um [Georges Cuvier]”, que foi um dos fundadores da Academia das Ciências e o primeiro embaixador português nos Estados Unidos, onde baseou a sua atividade diplomática e onde influenciou o desenho da política internacional norte-americana, nomeadamente o “Neutrality Act” de finais do século XVIII.

Com ligações à Maçonaria, Correia da Serra é um dos cientistas em estudo num projeto de investigação europeu sobre diplomacia científica, mas no seu próprio tempo acabou por ser votado à “invisibilidade”.

“Pode ter a ver com o facto de nunca ter escrito um tratado de botânica, ao contrário de colegas da altura. Optou por uma estratégia diferente, escrevendo artigos, e foi extremamente relevante na criação de comunidades de botânicos, criando a primeira grande comunidade de jovens botânicos nos Estados Unidos”, referiu Maria Paula Diogo.

“Há muitas vezes esta ideia de que, tirando o período áureo das Descobertas, a partir daí foi um constante declínio, que somos um país atrasado e continuamos a ser e há aí várias batalhas. Do ponto de vista internacional, o papel dos portugueses na chamada revolução científica não é reconhecido”, aponta Ana Simões.

No seu trabalho, realizado no âmbito do Centro InterUniversitário de História das Ciência e Tecnologia (uma colaboração entre a Nova e a Universidade de Lisboa), as autoras têm percebido que “a expansão é período relevante, mas os restantes não são menos, a construção historiográfica é que dá essa sensação”, resume Maria Paula Diogo.

“Como todos os países europeus, também tivemos ciência, tecnologia e medicina antes da expansão, a Idade Média não é um buraco negro”, mas o período das descobertas, marcado por avanços centrados na atividade náutica “acabou por criar uma noção errada”.

Maria Paula Diogo aponta, por exemplo, o período da Regeneração, a partir da segunda metade do século XIX, com os governos de Fontes Pereira de Melo, marcados por “engenheiros à volta do aparelho de Estado” e pela criação dos caminhos de ferro em Portugal, em que os aspetos científicos e tecnológicos “merecem duas linhas” em algumas Histórias de Portugal, o que produziu “um efeito de quase apagamento do que se fez após a Expansão”.

Na história da ciência em Portugal, há que “desmistificar ideias maniqueístas e muito redutoras”, defendeu Ana Simões, indicando o exemplo do que se passou durante o Estado Novo.

“Não faz sentido pensar que o Estado Novo, por ser um regime ditatorial, não tem ciência e, portanto, adotar acriticamente a ideia de que aquela visão mais ruralista não tinha um contraponto. Criaram-se treze laboratórios estatais muito importantes”, refere a investigadora.

Maria Paula Diogo acrescentou que ciência, tecnologia e medicina “nunca são neutras” e que “os cientistas envolvem-se em agendas políticas sem aquela benignidade que é a ideia do conhecimento universal”.

Por um lado, “não existem cientistas que não soubessem que estavam no Estado Novo” e, por outro, “os regimes usam a ciência, tecnologia e medicina nas suas agendas, criando às vezes na sociedade e na comunidade científica posições extremamente duras, como as grandes purgas nas universidades durante o Estado Novo ou o envio de cientistas menos adeptos do regime para as então colónias portuguesas”.

“Na realidade, as ciências, tecnologia e medicina são sempre excessivamente importantes para que o poder político não as utilize, é absurdo pensar que qualquer regime as põe de lado”, frisou Maria Paula Diogo.

A coleção, editada pela Tinta da China, está dividida nos volumes “Novos Horizontes (sécs. XV a XVII)”, “Razão e Progresso (séc. XVIII), “Identidade e ‘Missão Civilizadora’ (séc. XIX)” e “Inovação e Contestação (séc. XX)”.

A coleção vai até à transição para o século XXI, desde o pós-25 de Abril às alterações introduzidas na década de 1990 pelo ministro da Ciência Mariano Gago, até à “relação atual entre investigação científica e empresas”.

Mais do que acontecimentos pontuais marcantes, a história científica, tecnológica e médica em Portugal pode ver-se organizada em “grandes blocos temporais que marcam a cadência dos séculos” em diálogo com o resto da Europa, referiu Maria Paula Diogo.

A coleção vai ser apresentada no dia 13 de julho na Aula Magna da Universidade de Lisboa.

LUSA/HN

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