Vitor Almeida: “Perdemos uma oportunidade de ouro de marcar a história da Medicina em Portugal”

01/02/2023
O chumbo da especialidade de Medicina de Urgência não era o desfecho esperado para uma proposta há mais de duas décadas desejada. A votação, que segundo o presidente do Colégio da Competência em Emergência Médica “foi um choque”, “não representa a maioria dos profissionais informados, os diretores de serviços de urgência e muito menos os legítimos interesses de dez milhões de portugueses”. Sobre o futuro que espera ao SNS, Vitor Almeida alerta: “os diretores de serviço vão ter de continuar a contratar tarefeiros em número crescente sem (…) oferecer uma carreira que tanto defendemos para o nosso SNS”.

HealthNews (HN)- Há mais de vinte anos que se discute a criação da especialidade de Medicina de Urgência. Em que medida esta nova especialidade iria contribuir para a melhoria do funcionamento do sistema de saúde?

Vitor Almeida (VA)- Em primeiro lugar, garantíamos uma melhoria qualitativa dos cuidados médicos de urgência. Esta questão está cientificamente comprovada e a própria Organização Mundial da Saúde recomenda que todos os países implementem esta especialidade, de forma a garantir um serviço de urgência e emergência com qualidade a todos os cidadãos. 

Em segundo lugar, poderíamos alocar especialistas desta área em toda a rede de urgência do Serviço Nacional de Saúde e reforçar as estruturas existentes. É importante sublinhar que, neste momento, parte relevante da força laboral dos Serviços de Urgência Básica, Urgência Médico-Cirúrgica, Polivalente e de Medicina de Emergência Pré-Hospitalar / Transferências, é assegurada por médicos sem qualquer especialização. 

Em terceiro lugar, esta especialidade iria trazer mais-valias a nível organizacional. Os hospitais poderiam recrutar, para as suas equipas de urgência, profissionais com uma carreira dedicada a esta área. Atualmente, estas equipas são formadas por médicos de diferentes especialidades, sem qualquer vínculo a um “Serviço” de Urgência (SU) propriamente dito, o que impede a criação de estruturas verdadeiramente “dedicadas”. 

HN- Mas a implementação desta especialidade só iria dar frutos passado alguns anos…

VA- A Especialidade de Medicina de Urgência não iria só dar frutos daqui a cerca de seis anos após a formação dos primeiros Internos, mas muito antes. Para garantir uma transição e a possibilidade de reorganizar os SU com maior celeridade e criar um “pool” de formadores, foi proposta uma admissão por consenso muito abrangente e alargada, que permite atribuir o título de especialista de Medicina de Urgência a todos os especialistas com mais de dois anos de experiência, que exercem atividade clínica nesta área, e que cumprem uma série de critérios do ponto de vista formativo. Mas voltando às vantagens já mencionadas: este modelo de equipas fixas com especialistas dedicados iria permitir investigação com qualidade. Esta possibilidade não existe atualmente nos serviços de urgência como desejamos. É extremamente difícil poder organizar qualquer tipo de investigação que é crucial para garantir dados fiáveis e percebermos o que estamos a praticar neste momento. O controlo de qualidade seria evidentemente facilitado.

HN- Olhando para a pressão nos serviços de urgência hospitalar a nível nacional, faria então todo o sentido termos médicos especialistas nesta área

VA- É importante reforçar o que o nosso colégio sempre afirmou que esta especialidade não é uma solução para todos os problemas do sistema, mas é inegável que constitui uma peça fundamental, incontornável e a única que está exclusivamente na mão dos médicos. Todas as outras dependem do poder político. Curiosamente, e após a votação negativa que foi recebida com estupefação por muitos colegas, alguns detratores desta causa já admitem que “ainda não é o timing“, dando a entender que até concordam com o conceito da especialização. Não podemos ignorar o facto de que muitos dos opositores desta especialidade ou não exercem na medicina de urgência / emergência, ou são em grande parte colegas que vivem ou viveram a realidade dos grandes hospitais de fim de linha. É importante perceber que em Portugal existem hospitais de média e pequena dimensão, Serviços de Urgência Básica, e uma Emergência Pré-Hospitalar fragilizados e dependentes de médicos sem formação supervisionada pela Ordem. Só a especialização garante essa segurança, e é sobretudo nesses hospitais e nessas áreas de atuação, onde estes especialistas seriam uma mais-valia, salvando vidas e garantindo ganhos em saúde para nós todos. 

HN- Apesar ser já ser uma realidade na maioria dos países europeus, em Portugal esta especialidade ainda divide opiniões. Estaremos a insistir num erro?

VA- A vasta maioria dos países europeus já implementou esta especialidade, só Portugal, Chipre e Áustria é que não, sendo que a vizinha Espanha já a implementou no setor militar, prevendo-se o alargamento em 2023 para a generalidade do sistema. Se a tivéssemos implementado há dez anos, o nosso Serviço Nacional de Saúde já teria equipas reforçadas com estes especialistas bem formados e preparados para responder às verdadeiras necessidades dos doentes. 

Nesta época festiva vai acontecer seguramente o mesmo que aconteceu no verão. Se estamos dependentes de médicos tarefeiros e de profissionais que não fazem parte do quadro daquela equipa de urgência, as escalas vão voltar a ficar desfalcadas. E os resultados estão à vista.

HN- Manuel Pizarro já admitiu a possibilidade de existirem constrangimentos em algumas urgências hospitalares no Natal e fim de ano

VA- Esses constrangimentos vão surgir por duas razões. Em primeiro lugar, o SNS não está a conseguir segurar os profissionais que especializa. Apesar de as questões salariais não serem da competência da Ordem dos Médicos, é evidente que é um aspeto que explica a falta de médicos. Curiosamente acabamos por gastar avultadíssimos valores em horas extraordinárias e em médicos tarefeiros, com pagamentos muito díspares e iniquidade.  Isto cria um sentimento de injustiça dentro da classe médica, que é compreensível, e que não facilita uma reflexão objetiva sobre este tema. 

HN- A Assembleia de Representantes da Ordem dos Médicos chumbou a criação da especialidade de Medicina de Urgência. Qual a leitura que faz da rejeição manifestada pela instituição? 

VA- Vivemos num sistema democrático, por isso só nos resta aceitar este veredito. Temos de respeitar esse voto mas que no nosso entender não representa a maioria dos médicos informados sobre esta temática. Quem apelou ao voto contra? O Colégio de Medicina Interna, da Pediatria e o da Medicina Geral e Familiar. É preciso perceber que dentro da Medicina Interna as opiniões se dividem. Uma parte importante dos colegas mais novos é a favor da especialidade. O mesmo se aplica à Pediatria. Observamos, por um lado, a posição pública do senhor presidente do Colégio de Pediatria, o Dr. Jorge Amil, colega honrado que respeito, e que se manifesta sempre contra esta especialidade, e, por outro lado, a posição da Sociedade Portuguesa de Pediatria de Urgência e Emergência que é a claramente a favor. 

Relativamente à Medicina Geral e Familiar tenho ouvido comentários de colegas manifestando total “estupefação” face à posição do Colégio, nomeadamente depois da clara contestação nos órgãos próprios por parte de colegas que discordam da posição do Sr. Presidente. Não percebemos como é que a MGF se junta à posição contra uma especialidade que é fundamental para o atendimento dos doentes, com rigor e qualidade, no mundo civilizado. O que é que vai acontecer agora? Assistirmos a doentes referenciados dos hospitais para os Centros de Saúde que nem conseguem dar resposta aos seus próprios utentes e ainda são obrigados a atender doentes agudos para aliviar os Hospitais? E quem triou esses doentes no SU e decide quem fica no SU? Médicos indiferenciados? Um sistema de triagem automatizado? Como se explica que responsáveis da MGF (que sempre lutou para que um médico de família fosse especialista com um internato de quatro anos), defendam que “urgêncistas” não precisem também de ser especializados com um internato de cinco anos como o curriculum europeu exige?   Onde está a coerência técnico-científica? Não se compreende como é que alguém com responsabilidades no sistema possa rejeitar um modelo que garante mais organização e qualidade. Temo que esta postura de bloqueio para soluções concreta contribua indiretamente a médio e longo prazo também para que se sobrecarreguem ainda mais os cuidados de saúde primários com os problemas de urgência. 

Quem apelou ao voto contra vai ter de encontrar soluções concretas, viáveis e alternativas qualitativas, nomeadamente para garantir segurança na verdadeira urgência e emergência aos portugueses de forma sustentável, desde o momento da ocorrência até ao internamento no serviço de destino. Já nem falo da crucial importância destes especialistas para a Medicina de Catástrofe. Somos um país de fraca memória. 

Todos concordamos que foi com os Internatos Médicos de Especialidades que demos o grande salto qualitativo na medicina em Portugal. Que se aplique o mesmo princípio nesta área vital. Sobretudo o Colégio de Pediatria, ao apelar ao voto contra, vai ter de encontrar uma justificação plausível para os portugueses, que vá muito além dos artigos publicados por parte do seu Presidente, para rejeitar um plano formativo, com qual até acabou por colaborar, e que inclui a abordagem especializada desde o recém-nascido à criança crítica vítima de doença ou acidente, com o foco de atuação no Pré-Hospitalar e Unidades de SU sem pediatras.

HN- Se é uma especialidade defendida por antigos e atuais diretores de serviços de urgência não seria de esperar que a Ordem dos Médicos desse ouvidos a estes apelos e fizesse parte da solução?

VA- É preciso registar que nesta votação só um terço do número total de elementos da Assembleia de Representantes votou contra. A presença de só metade da totalidade dos colegas da AR e a forte motivação do voto contra, bem patente com o apelo para a rejeição dos colégios supracitados, explica os resultados. Em democracia temos de saber respeitar resultados mas será também a democracia e a ciência a encontrarem o caminho certo que defenda os interesses dos nossos doentes, de uma forma ou outra.

Relativamente aos manifestos de apoio que registamos, efetivamente um foi o dos antigos e atuais diretores de serviços de urgência. Ninguém melhor do que estes médicos e colegas conhecem os problemas das urgências. Houve também apoios fortíssimos de várias sociedades científicas nacionais e internacionais. Chegaram cartas de apoio à Ordem, da Sociedade Europeia e de mais de 20 Sociedades nacionais Europeias, da Federação Mundial de Medicina de Urgência/Emergência, do American College, etc. Todos esperançados em ver Portugal integrado nesta vastíssima comunidade científica. Para os nossos colegas e parceiros europeus o resultado da votação foi um choque. Temos ouvido argumentos contra a Especialidade que não fazem qualquer sentido e que roçam o absurdo. Frases como: “se pagarem a todos os médicos 70 euros à hora extra, os problemas nas urgências em Portugal ficam resolvidos” são absolutamente inaceitáveis e revelam um atroz desconhecimento da verdadeira problemática no terreno. Outro argumento ouvido foi que se “considerasse um risco criar-se uma especialidade onde os médicos não têm retorno das situações clínicas que observam e não seguem doentes no internamento”.  Eu como anestesista não interno doentes, nem sigo durante meses o doente atropelado que reanimo na estrada quando exerço numa VMER, da mesma forma que o médico de família pode estar a atender doentes agudos (que não são do seu ficheiro) e não os segue durante toda a vida. Portanto, este tipo de argumento para desvalorizar a Especialidade, é simplesmente ilógico.  

Um outro argumento apontado é que têm de ser primeiro resolvidos todos os problemas do SNS para depois avançar com a especialidade. A questão é que estes processos têm de decorrer em paralelo. Problemas multifatoriais exigem soluções versáteis e que sigam o estado da arte médica mundial.

HN- Esta questão da criação da especialidade ganha ainda maior relevância ao tratar-se de uma das poucas medidas que está exclusivamente nas mãos dos médicos…

VA- Exatamente. Todas as outras soluções dependem do poder político, do Ministério das Finanças e da organização do SNS. A formação médica e a qualidade dos serviços prestados aos doentes estão nas mãos dos médicos e neste caso houve um compromisso forte também do governo e iniciativas favoráveis por parte da oposição. Existe um consenso claro e forte nos que querem ser parte da solução. O nosso próprio Bastonário reconheceu que a Especialidade irá trazer benefícios para os doentes, tendo também ele sempre manifestado como nós, e de forma muito ponderada, que não é a solução para todos os problemas dos SU. Portanto, perdemos uma oportunidade de ouro de marcar a história da Medicina em Portugal neste dia doze de dezembro. O que estava neste momento nas mãos da Ordem dos Médicos vai passar tal como aconteceu com a Medicina Intensiva, para a esfera política. Tivemos a oportunidade de marcar posição e de manter o controlo de todo este processo. Enquanto presidente do Colégio proponente e respeitador da importância da Ordem, não é algo que veja com agrado. Gostava de ter visto este tema encerrado no seio da Ordem dos Médicos. Até porque não era uma proposta definitiva e compete ao colégio instalador otimizar o processo. Se existiam dúvidas bastaria terem proposto adiar a votação e permitir que se esclarecessem melhor os próprios médicos envolvidos e depois tomava-se uma decisão. Infelizmente foi votado negativamente e estou convicto que esta rejeição não representa a maioria dos profissionais informados, os diretores de serviços de urgência, e muito menos os legítimos interesses de dez milhões de portugueses.

HN- Que consequências poderão surgir com uma não implementação da Especialidade?

VA- Não é uma decisão que traga benefícios para a população portuguesa. Vamos continuar a ter dificuldades em criar equipas fixas especializadas e na gestão dos recursos humanos. Portanto, estes problemas que temos, irão agravar-se sem qualquer dúvida. Está em causa o pressuposto da equidade no acesso a cuidados de urgência e emergência, se não se reverter esta tendência. 

HN- Qual o futuro que prevê para os serviços de urgência do SNS nos próximos tempos?

VA- Vamos continuar a assistir a uma assimetria de cuidados que considero muito preocupante. Vamos continuar a ter uma rede de Serviços de Urgência Básica, Médico-Cirúrgica e Polivalente sem qualquer especialista nesta área. O INEM vai continuar a ter dificuldades em recrutar médicos para uma carreira especializada porque simplesmente não existe. Os diretores de serviço vão ter de continuar a contratar tarefeiros em número crescente sem poderem criar um espírito de equipa e oferecer uma carreira que tanto defendemos para o nosso SNS. Os jovens médicos que se queriam dedicar a esta área só vão ter duas opções: emigrar ou continuar a ser autodidatas. Há dados que mostram que quase 80% dos médicos jovens poderiam estar interessados nesta especialidade. Portanto, estamos a fechar a porta a uma nova geração de médicos que sonham seguir este caminho. Tendo em conta que no fim vencerá o bom senso e a Especialidade em Medicina de Urgência será uma realidade também e Portugal, resta-nos continuar neste caminho de pedras. Não desistiremos. Perdemos uma votação, é um facto. Mas há derrotas para os vencidos, que são vitórias Pírricas para os vencedores.

Entrevista de Vaishaly Camões

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