Na época, jovem assistente de análises nos Hospitais Civis de Lisboa, Germano de Sousa foi acordado às primeiras horas da manhã pelo amigo José Niza [autor da letra de “E Depois do Adeus”, primeira música usada como senha para a revolução], que lhe garantia que as tropas estavam na rua e que estava em curso a esperada mudança de regime. Não acreditou. Pensou tratar-se de uma brincadeira.
Mas antes que desligasse o telefone para voltar a dormir, o amigo, também médico, insistiu: “Eh pá é [verdade]. Anda, liga o Rádio Clube Português, porque eles estão a dar notícias”. Assim fez.
“Foi uma alegria enorme, mas, ao mesmo tempo, com receio, porque aquilo podia dar para o torto. Felizmente não deu!”, confessou, em entrevista à agência Lusa, realizada no laboratório que dirige, em Lisboa.
Seguiu pela Marginal rumo ao Hospital de Nossa Senhora do Desterro, que funcionou entre 1591 e 2007. “Era o meu hospital de origem, onde estava colocado, depois fui para São José”, contou.
Pela manhã, ainda longe de se saber o desfecho da ação militar que depôs o regime, esperavam-se mortos e feridos nos hospitais, apesar da preocupação expressa pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) “de não fazer correr a mínima gota de sangue de qualquer português”.
Germano de Sousa estava de banco no Hospital de São José, situado numa das colinas de Lisboa, mais perto do epicentro da revolução que decorria entre o Terreiro do Paço e o Largo do Carmo.
“Ainda fui ao Hospital do Desterro ver se era preciso alguma coisa. Estava meio deserto, tenho a impressão que foram só os médicos internistas que foram lá cuidar dos doentes e tudo o que fossem consultas externas, fosse o que fosse, ninguém apareceu”, lembrou.
Nesse dia, pouco se trabalhou no Hospital do Desterro, os médicos que ali acorreram reuniram-se no pátio para comentar a situação. A maior parte dos presentes apoiava a revolução.
Germano de Sousa seguiu então para o Hospital de São José, que era “o peso pesado” das urgências em Lisboa.
“Nesse dia, a gente esperava, naturalmente, que houvesse mortos e feridos”, assumiu o médico. A espera foi vivida com “uma ansiedade enorme” pelo pessoal clínico. “Mas, na realidade, no dia 25 propriamente dito só à noite é que apareceram feridos daquela tentativa de o povo ir até à PIDE [sede da polícia política] e os pides dispararam e houve quatro mortos e uma data de feridos”, recordou.
Os feridos eram “gente relativamente jovem”, entre a qual se encontravam suspeitos de pertencerem à PIDE-DGS ou de serem informadores da polícia que perseguia, prendia e torturava opositores ao regime. Tinham sido “esmurrados” pela população.
“O pior foi o dia seguinte. No dia 26 é que começaram a aparecer uma data de pessoas. Lembro-me perfeitamente de um tipo que era suspeito de ser informador da PIDE que tinha levado uma data de tabefes da população civil, vinha mal tratado, e quem o trazia eram os militares (…) e vinham atrás dele uma data de civis, queriam entrar todos ao mesmo tempo, juntamente com os feridos e com a polícia, no banco de São José e a gente já sem saber o que podíamos fazer”, assumiu o patologista.
Foi o médico assistente, equivalente ao chefe de serviço, o cirurgião Bentes de Jesus, que se impôs, fazendo-se valer da patente militar obtida enquanto oficial miliciano: “Pôs-se à frente de toda aquela gente, ´Meus senhores, os militares? Eu sou fulano tal´. Ele tinha acabado de vir da guerra em Angola, há pouco tempo, e era tenente-coronel miliciano, Imagine que havia tenentes-coronéis milicianos [risos]! Ele era tenente-coronel miliciano médico, mas não tinha feito nunca a carreira militar, tinha sido, enfim, levado à força como eu fui. E com a voz de tenente-coronel miliciano médico pôs as tropas em sentido – ´Expulsem-me esses civis todos daqui para fora´”.
Os militares conseguiram pôr na rua os civis, que estavam “revoltadíssimos”. E assim foi durante o resto do dia e no seguinte.
“Todo o dia 26 ali no banco da urgência era sempre chegada de tipos que tinham levado na cara ou vinham em mau estado, porque começaram, naturalmente, as denúncias de que fulano é informador, fulano é informador… e nós tivemos de os receber todos e estávamos ali para o que desse e viesse, com certeza, mas eram habitualmente resultantes [os feridos] de pugnas que havia e de vinganças e de pancada. Alguns devem tê-las merecido muito bem [risos], outros talvez não, não sei, que a nós não nos competia de modo algum ir investigar a verdade. Como médicos, tínhamos de tratar quem aparecia lá”, afirmou.
Também houve tempo para celebrar. “Ah, sim! Nós todos, praticamente, não podíamos com o regime e celebrámos”, assumiu Germano de Sousa, que graças ao envolvimento nos movimentos estudantis de oposição ao regime de Salazar, foi impedido de entrar nos hospitais civis quando concluiu o curso.
“Eu era muito ligado à extrema-esquerda, mas, enfim, eram tempos loucos (…) e naturalmente a PIDE não perdoava e quando chegou a altura castigaram-me e proibiram-me”, relatou: “É uma sensação estranha, a gente querer fazer a nossa vida, além do sentimento de opressão e tudo isso, acima de tudo, a gente sente-se desamparado”.
Dos dias da revolução, Germano de Sousa recorda ainda uma revolta dos enfermeiros contra os médicos, que dispunham de uma sala exclusiva para as refeições. Passados poucos dias do 25 de Abril, um enfermeiro bate à porta para anunciar o fim do privilégio dos médicos, ao que o chefe de serviço, um conservador, terá respondido com algo entre “uma semi-porta na cara/semi-soco”, segundo a descrição do entrevistado, para quem o dia da revolução foi o “mais feliz” da sua vida, tirando os dias em que nasceram os filhos.
LUSA/HN
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