“Já é muito difícil dizermos que não estamos numa segunda vaga se olharmos para a nossa curva. Está claramente a subir (…). A França está numa típica segunda vaga (…) e chegam-nos sinais preocupantes de Espanha, do mesmo país que nos antecipou o que estava a acontecer na primeira vaga. O que é que há de diferente neste momento em Portugal [em relação ao pico de março, abril ou maio]? A população que é atingida e a taxa de letalidade que tem sido menor agora”, referiu Nelson Pereira, médico do serviço de urgência do Hospital de São João.
À conversa com a agência Lusa, enquanto analisa gráficos de vários países europeus e descreve os passos que o São João está a dar no combate ao novo coronavírus, o diretor da Unidade Autónoma de Gestão de Urgência e Medicina Intensiva do centro hospitalar que chegou a receber 350 casos suspeitos de Covid-19 num só dia na chamada “primeira vaga” de infeção aproveita para deixar apelos.
“Tenho uma mágoa, uma angústia, que é os jovens não terem percebido que têm um papel social e fundamental a desempenhar. Não peço para que as pessoas fiquem fechadas dentro de casa, mas acho que não se conseguiu transmitir uma consciência de que, ainda assim e com algumas cautelas, é possível conviver”, refere.
Este reparo é sublinhado pela diretora do serviço de urgência do mesmo hospital, Cristina Marujo, que admitindo que o período de confinamento “pode ter pesado” às diferentes gerações “de forma diferente com maior ou menor dificuldade”, lamenta a falta daquele “bocadinho mais de consciência que, se tivesse ficado, se traduziria mais no agir e nos cuidados a ter”.
“Vamos continuar a ter grupos que se reúnem sem máscara – às vezes apetece dar uns abanões –, mas revolta não sinto. Se calhar fomos nós que não passamos a mensagem. Basta essa mensagem passar, esse comportamento melhorar, e isso refletir-se-á no tipo de população infetada e na [taxa de] letalidade [do vírus]”, aponta a especialista.
A pandemia de Covid-19 já provocou pelo menos 965.760 mortos e mais de 31,3 milhões de casos de infeção em 196 países e territórios.
Em Portugal, de acordo com o boletim mais recente da Direção-Geral da Saúde (DGS), morreram 1.925 pessoas dos 69.663 casos de infeção confirmados.
O maior número de óbitos continua a concentrar-se nas pessoas com mais de 80 anos, mas em julho o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, já alertava para um possível aumento de casos não ligado a mudanças no comportamento do vírus, mas sim a alterações “no comportamento humano” e pedia responsabilidade aos jovens.
“Parece que vivemos do oito ao 80. Só sabemos ou estar fechados em casa ou viver de forma normal. Claramente já deslumbrámos a preocupação de todos: dos políticos e dos técnicos”, analisa Nelson Pereira.
O médico diz que “parece estar a faltar habilidade” na explicação de conceitos como “risco” e “transmissão”, observando que “a sociedade, incluindo muito os jovens, acha que risco é apenas evitar um sítio, quando risco pode ser ter comportamentos pouco seguros em casa”.
“As pessoas perdem a noção do conceito de transmissão e apegam-se ao sítio como risco (…). O risco sério não é nas compras. No supermercado desinfetamos as mãos e estamos de máscara. O risco sério é quando se faz uma almoçarada em casa. Nas escolas cumprem-se as regras, a partilha fora é que é preocupante. As pessoas acham que dentro do seu ambiente de trabalho, condomínio, estão numa espécie de bolha e não estão”, exemplifica o especialista.
Cristina Marujo concorda e aproveita para tentar desfazer uma expressão que, do seu ponto de vista, demonstra essa “baralhação de conceitos” ou “a confusão sobre o que são bolhas ou núcleos de coabitantes”.
“Dizem: ‘oh, nós estamos sempre uns com os outros e só entre nós’ quando é uma família que se junta ou um grupo que convive. O problema é que cada um desses ‘uns com os outros’ está com muitas outras pessoas porque vai trabalhar, faz compras, carrega no botão do elevador”, descreve a diretora da urgência.
Os especialistas do São João – hospital que, de forma global, soma cinco níveis de contingência, sendo o “um” a solução normal e sendo que cada um dos serviços pode mais ou menos etapas de contingência conforme as suas especificidades – apontam a “mudança de comportamento” como “medida mais importante no imediato”.
Cristina Marujo elogia “a sociedade por ter percebido rápido a mensagem que se traduziu na proteção dos mais idosos” e lembra que “o Serviço Nacional de Saúde se preparou”, enquanto Nelson Pereira aponta que “não é preciso que a taxa de transmissão passe a zero para ser controlável”, mas “é fundamental achatar a taxa [de infeção] e garantir que ela não cavalga”.
LUSA/HN
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