A água que mata num Paraíso de lixo e pó

12 de Janeiro 2025

Chamaram-lhe Paraíso, nome que sugere bem-estar e refúgio, mas são o desânimo e o desamparo que reinam neste bairro periférico de Luanda, onde, a juntar à pobreza e criminalidade, surge agora a cólera.

Pelo menos cinco pessoas foram oficialmente proclamadas vítimas de cólera, doença ligada à contaminação fecal associada à falta de saneamento e tratamento de água e má higiene, e os habitantes estão preocupados, pedindo a intervenção das autoridades angolanas.

Atravessando uma enorme vala onde se acumulam detritos e águas fétidas, um grupo de mulheres seguem perfiladas pela ponte do Paraíso, sem se deixarem vergar ao peso do líquido que carregam à cabeça em enormes alguidares.

Entre estas, está Fernanda, que apesar da caminhada de meia hora para ir buscar água ao tanque e do cansaço evidente aceita falar à Lusa.

“Com a cólera, temos de ter muita água. Temos de lavar as mãos, lavar bem os alimentos, mas como a água não é suficiente, não fazemos isso. Até para banhar, (são) só duas garrafas de água que usamos e para lavar as mãos todos os dias não dá”, lamenta, acrescentando que desinfeta a água com lixívia antes de usar.

As mulheres percorrem todos os dias vários quilómetros até aos tanques distribuídos pelo bairro para conseguir água para lavagens ou para beber, em quantidades que variam de acordo com as necessidades e o tamanho da família, mas também dos rendimentos disponíveis, já que cada alguidar custa entre 300 e 500 kwanzas (entre 30 e 50 cêntimos), num país onde o ordenado mínimo ronda os 70.000 kwanzas (74 euros) e as famílias têm em média sete elementos.

Para concretizar esta tarefa, essencialmente feminina, as “mamãs” têm de sair de casa às 04:00, como contou Júlia, que muitas vezes tem de escolher entre deixar os seus kwanzas no tanque de água ou gastar o dinheiro em comida para os filhos.

Na vala, duas crianças com garrafões molham-se na água imunda.

Os mais velhos desabafam sobre os problemas, com queixas comuns sobre a falta de água, a doença, o desemprego, o abandono.

Ernesto Joaquim Vunge reforça a carência de água, que é “suja”, e diz que “está a trazer doenças”.

“Estamos a beber água muito turva”, confidencia.

Um outro morador, José Mamona, receia ter sido contaminado: “estou com problemas de vómito e dor de barriga, estive no hospital grande [Hospital Municipal de Cacuaco] e não se fez nada, não tem mesmo medicamentos”, relata, enquanto exibe uma garrafa de água mineral que assume não ter dinheiro para adquirir todos os dias por estar desempregado, tal como a maioria dos habitantes do bairro que vivem da economia informal e de biscates.

Junto a um tanque, Teresa prepara-se para acartar água, tarefa que cumpre três ou quatro vezes por dia, queixando-se de chegar a gastar 5.000 kwanzas diários (cinco euros).

“A água aqui é um negócio”, indigna-se Venâncio Samuel, da agência funerária que hoje acompanha mais uma família ao cemitério, apontando um número anormal de mortes.

“A maior parte dos funerais, estamos a fazer no bairro Paraíso, desde a semana passada já fizemos mais de 15 funerais”, afirma, denunciando que muitos operadores de cisternas enchem os tanques com água recolhida diretamente no rio Kifangondo e a fornecem aos munícipes, sem qualquer tratamento.

“É uma questão que está a preocupar-nos, as pessoas dão sintomas de diarreias e vómito e quando chegam ao hospital já não resistem e morrem”, sublinhou, sublinhando que a água do Paraíso está “amarelada” e instando as autoridades a acompanharem o caso.

“Aconselharia quem de direito a vir informar a população de como tratar a água, acho que o Paraíso é um bairro esquecido (…) Estamos preocupados, a vida é algo sagrado, são mesmo muitas vidas que estão a sair do Paraíso”, entristece-se, junto de mais um velório, nestes dias em que a morte tem rondado o Paraíso.

António Garcia é o pai do homem que faleceu. Tinha 45 anos e morreu devido à doença, disse à Lusa o progenitor, contando que passaram apenas dois dias entre o início dos sintomas e a perda do filho, que começou com vómitos após ter consumido água que supõe contaminada.

No hospital onde foi assistido, os médicos “disseram que era problema da cólera” e deram tratamento, mas o filho “não aguentou”, continua António Garcia, acrescentando que na casa dos vizinhos uma criança acabou também por falecer devido à doença.

“Ninguém sabia se (a água do tanque) estava contaminada ou não, por isso beberam, claro”, conta.

O presidente da comissão de moradores nega que haja incúria das autoridades e garante esforços de sensibilização junto da população, apesar de os moradores terem declarado à Lusa que não foram contactados por técnicos de saúde.

Miranda Dembo realçou que a comissão tem estado a trabalhar com a direção provincial de saúde, entidades religiosas e coordenadores dos quarteirões para “ir ao terreno” sensibilizar a população.

“Estamos preocupados”, admite, dando nota da visita recente do secretário de Estado da Saúde, que atesta a preocupação das autoridades e a procura de soluções, que passam por enquanto pelo reforço dos camiões-cisterna que percorrem o bairro “com água tratada”.

Miranda Dembo salientou a evolução positiva no nível de delinquência deste bairro com 152 mil habitantes, que ocupa uma extensão de nove quilómetros quadrados, e destacou igualmente que há um projeto de conduta para fornecer água ao bairro inscrito no PIIM (Plano Integrado de Intervenção nos Municípios) que está “a seguir os trâmites”.

Até lá, continuam a ser necessários os camiões-cisterna, “um trabalho paliativo que tem sido feito pela EPAL [gestora da distribuição de água em Luanda] que controla a qualidade da água”.

Mas o responsável assume que o controlo tem falhas: “não conseguimos provar se a água está contaminada ou não”.

lusa/HN

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