Para o presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, Ricardo Mexia, parte do problema é que se tem “confundido aquilo que é comunicação em saúde, comunicação de risco, com assessoria de imprensa”.
“É fundamental percebermos que há um contexto de particular incerteza, sem certezas sobre muitas coisas, apesar de sabermos mais do que em março. Isso também tem que se comunicar e não é simples, implica ter pessoas mais treinadas para ser bem sucedido”, defende.
Ricardo Mexia, um dos rostos da comunidade médica mais vistos na comunicação social desde o início da pandemia, considera que “tem havido alguma dificuldade em manter a coerência na comunicação”.
“Nós não estamos a conseguir chegar às pessoas com informação simples e clara e que elas aprendam como sua”, afirma, salientando o “papel chave” que os comportamentos individuais têm na maneira de enfrentar a pandemia.
Quanto às conferências de imprensa diárias, com participação da ministra da Saúde, dos seus secretários de Estado, da diretora-geral da Saúde ou de outras autoridades de saúde, “são isso mesmo, conferências de imprensa, não são comunicação com as pessoas”.
“Há uma comunicação que é muito repetitiva dos números dos óbitos, dos meios, mas que depois, do ponto de vista prático, sobre aquilo que posso, enquanto cidadão fazer para reduzir o risco para mim e para os meus, não tem sido assim tão clara”, aponta Ricardo Mexia.
Com o ênfase nos números diários e acumulados de mortes e casos, o cirurgião especialista em medicina de catástrofe Nelson Olim defende que há outros números que deviam ser destacados e interpretados: “morrer de covid é diferente de morrer com covid e pôr tudo no mesmo saco é algo que, de alguma forma, tira valor aos números”.
“Quando se publica o número de mortos, não se diz quantas pessoas morreram devido à infeção por covid e quantas morreram por outras causas que também tinham covid. Nós sabemos que esse número está lá incluído e faz toda a diferença”, afirma.
Além disso, “um teste positivo não significa um indivíduo doente”, destaca Nelson Olim, questionando: “dos testes positivos quantas pessoas têm sintomas, na verdade?”
“Esses números existem e podiam ser transmitidos às pessoas e retirar um pouco do pânico e do medo que está instalado”, defende o cirurgião especializado em medicina de catástrofe.
Em vez disso, argumenta, “adotou-se o discurso do medo, que é amplificado pelos meios de comunicação social”.
“Todos os anos temos epidemias de gripe. Por exemplo, a época de gripe de 98/99 teve uma incidência de 800 casos por cada 100 mil habitantes. Na época de 88/89 houve cerca de 8.500 mortos no total. Vamos a 2014/2015 e estamos a falar de uma época com 5.500 mortos, 70 por cento dos quais acima dos 74 anos”, elencou.
“Será que o cidadão comum percebe que morrem em Portugal mais de 300 pessoas todos os dias e que dessas, há uma determinada percentagem que todos os dias morre de causas respiratórias, independentemente de haver ou não covid-19?”, questiona.
“Eu não nego que os números devam ser apresentados, têm é que ser postos em perspetiva. E isto não é minimizar de forma alguma aquilo que se passa. É dizer ‘atenção, já tivemos épocas de gripe onde morreu o dobro das pessoas que morreram até agora com covid”, acrescenta.
Outra vertente do que considera o “discurso do medo” tem a ver com os avisos sobre os serviços de saúde à beira da rutura.
“É a primeira vez? Claro que não. Elas estão sempre em rutura, principalmente nas épocas de outono-inverno. Quem trabalha no hospital de São José vê mais de 100 macas no corredor da urgência. Quem trabalha em São Francisco Xavier lembra-se de não haver sequer cadeiras para os doentes que vão ser internados, que tinham que estar sentados no chão”, afirma.
“E esta decisão de parar a atividade programada nos hospitais é condenar muitos milhares de doentes a desfechos muito piores do que aquilo que as medidas deviam estar a combater. O que conta são as mortes por covid e são essas que temos que evitar. Não me parece que isto seja uma estratégia adequada e isto tem que ser explicado, porque é que umas mortes valem mais do que outras”, advoga Nelson Olim, que acaba por reconhecer que a comunicação tem eficácia.
“As pessoas tendem a seguir as instruções que recebem sem as questionar. Agora se se está a criar o ambiente e a ideia corretas, é outra questão”, afirma, salientando que “a componente policial e da fiscalização” são determinantes.
Ricardo Mexia considera que tem havido “uma adoção significativa das medidas”, apesar de mensagens contraditórias que deviam ter sido mais bem explicadas.
“Há fatores complicados de comunicar. Porque é que podem ir 30 mil pessoas ver uma corrida de carros mas não podem ir mais do que 50 a um casamento. Se eu não explicar o fundamento técnico, é difícil as pessoas tomarem essas medidas para si”, considera.
No que toca às feiras, primeiro proibidas quando o Governo anunciou as mais recentes medidas restritivas e depois alvo de recuo da decisão, “algo que no sábado era verdade, na terça-feira já não era”, refere ainda.
Ricardo Mexia defende que há nuances que se podem introduzir que são úteis para reduzir o risco: por exemplo, membros da mesma família que moram em casas diferentes podem encontrar-se, conviver, mas podem evitar partilhar uma refeição, momento em que tiram as máscaras e ficam mais expostos a eventuais contágios.
“Deviam-se separar as decisões técnicas das decisões políticas. Ambas são legítimas, tem é que haver clareza sobre o que cada uma é e cada um assume as suas responsabilidades”, defende Ricardo Mexia.
Nelson Olim considera que “há um contexto político” que acaba por valer mais do que critérios técnicos para fundamentar decisões.
“É isto que os governos fazem, é salvaguardar a sua posição, dizer ‘nós fizemos alguma coisa, avisámos, demos todas as indicações possíveis e, se algo correr mal, não é culpa nossa’”, afirma, acrescentando que “há coisas que têm que ser explicadas e deviam ser mais transparentes”.
“Acho que não deviam tomar os cidadãos por alguém que não tem competência para questionar e compreender”, afirma.
Para o médico, que foi consultor da Organização Mundial de Saúde e responsável pela coordenação da aplicação móvel WHO Academy, destinada aos profissionais de saúde, as medidas de restrição de movimentos e os confinamentos totais ou parciais são apenas “um jogo de escondidas com o vírus”.
“A verdade é que não há nenhuma estratégia para exterminar o vírus. Podemos retardar a transmissão mas no final, o número de casos provavelmente vai ser igual, independentemente do que se faça. Esta é a dura realidade, que é difícil de transmitir às pessoas, porque, eventualmente, não há sequer coragem para o fazer”, afirma.
Nelson Olim acrescenta que “do ponto de vista político, seria difícil neste momento alterar a narrativa e começar a dizer que nos enganámos, ninguém vai dizer isso, especialmente depois do impacto económico que se verificou”.
“Vai ser muito difícil reconhecer que, de facto, se calhar há outras estratégias que poderiam ter sido mais bem sucedidas”, refere o cirurgião, acrescentando que “qualquer pessoa que tente ir contra o discurso corrente é imediatamente apelidada de negacionista, ou que está a desvalorizar a situação ou que é uma pessoa sem escrúpulos e na verdade não se importa com a saúde pública”.
LUSA/HN
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