Neste momento, enquanto perto de um milhar de cientistas e outros profissionais que trabalham naquele território estão a ver o sol pela primeira vez em semanas ou meses, há uma mobilização geral para tentar assegurar que os novos colegas que estão prestes a chegar não trazem o vírus com eles.
A partir da estação de pesquisa britânica “Rothera Research Station”, na península da Antártida que se estende em direção ao extremo da América do Sul, o guia de campo Rob Taylor explicou à Associated Press (AP) como é viver no que descreve como: “a nossa pequena bolha segura”.
Antes da pandemia, o isolamento de longo prazo, a autossuficiência e a pressão psicológica eram a norma para as equipas na Antártida, enquanto o resto do mundo encarava a vida destes profissionais como fascinantemente extrema.
Muito mudou, contudo, desde então.
“Em geral, a liberdade que hoje temos é maior que a dos habitantes do Reino Unido no auge do confinamento”, afirmou Taylor, que chegou à Antártida em outubro e passou, por isso, completamente ao lado da pandemia. “Podemos esquiar, socializar normalmente, correr, ir ao ginásio, fazer tudo dentro do razoável”, acrescentou.
Tal como as equipas espalhadas pela Antártida, incluindo no Pólo Sul, Taylor e os seus 26 colegas têm de ser capazes de desempenhar todo o tipo de tarefas num ambiente remoto e comunitário, sem grande margem para erro. Têm turnos na cozinha, fazem observações meteorológicas e “muita costura”, disse.
As boas ligações à Internet existentes permitiram-lhes acompanhar de perto a progressão da pandemia no resto do planeta. E se, até este ano, as conversas com os colegas que chegavam se centravam em preparar os recém-chegados para o que os esperava, agora os conselhos vão ser dados nos dois sentidos.
“Tenho a certeza de que muito nos podem dizer para nos ajudar a adaptar à nova normalidade. Ainda não temos qualquer prática ao nível do distanciamento social!”, diz Taylor.
Na base Scott, da Nova Zelândia, rondas de mini golf e uma competição de cinema com outras bases da Antártida têm sido os pontos altos do inverno no hemisfério sul, que acabou para a equipa da Scott quando avistaram o sol, na passada sexta-feira. Não o viam desde abril.
“Acho que há um pouco de dissociação”, disse à AP Rory O’Connor, médico e líder de inverno da equipa, sobre como é acompanhar a pandemia à distância. “A nível racional temos noção do que passa, mas acho que não temos verdadeiramente consciência da instabilidade emocional que deve estar a causar”, diz.
Ainda assim, refere, a sua família no Reino Unido continua a não estar disposta a trocar de lugar com ele: “Eles não compreendem porque vim para aqui”, graceja, para viver “meses de escuridão, preso dentro de casa com um pequeno grupo de pessoas”. “Qual é a piada disso?”, questiona.
Segundo O’Connor, as equipas no terreno na Antártida vão estar preparadas para efetuar testes à covid-19 quando os colegas começarem a chegar, já na segunda-feira, com semanas de atraso porque uma enorme tempestade levou à acumulação de seis metros de neve em algumas zonas.
Qualquer caso positivo irá desencadear um “alerta vermelho”, garantiu, com as atividades a passarem em centrar-se no aquecimento, fornecimento de água, energia e alimentação.
Com a covid-19 a agitar algumas relações diplomáticas, os 30 países que integram o Conselho de Gerentes de Programas Antárticos Nacionais (COMNAP, do inglês Council of Managers of National Antarctic Programs) articularam-se atempadamente para manter o vírus longe, com um intenso trabalho de equipa entre os Estados Unidos, a China, a Rússia e outros membros.
Enquanto o mundo iniciava, assustado, em março, o confinamento, os Programas Antárticos concordaram que a pandemia poderia vir a causar ali um verdadeiro desastre. Com os ventos mais fortes e as temperaturas mais baixas do mundo, o continente – cuja dimensão é semelhante à dos Estados Unidos e do México, é já suficientemente perigoso para os trabalhadores das 40 bases permanentes ali existentes.
“Um novo vírus altamente contagioso significaria mortalidade e morbilidade no ambiente extremo e austero da Antártida, o que, associado às respostas limitadas disponíveis a nível médico e de saúde pública, representaria um elevado risco, com consequências potencialmente catastróficas”, refere um documento da COMNAP citado pela Associated Press.
Sendo a Antártida apenas acessível através de um reduzido número de corredores aéreos ou por via marítima, “é preciso fazer tudo, no imediato, para evitar que o vírus chegue ao continente”, lê-se no relatório, que determina o fim do contacto com turistas e do desembarque de navios de cruzeiro.
Já relativamente às equipas da Antártida sediadas em localizações próximas, a COMNAP avisa: “as visitas mútuas e os eventos sociais entre estações/instalações deve acabar”. E, embora os trabalhadores na Antártida estejam há muito treinados na lavagem frequente das mãos e na etiqueta respiratória, a COMNAP acrescenta: “Não toquem na face”.
Stephanie Short, responsável pela logística do programa U.S. Antarctic, lembra que, durante as semanas que antecederam a suspensão das viagens aéreas, os Estados Unidos “felizmente” reforçaram os ‘stocks’ de equipamento médico e outros materiais para o inverno e tempos seguintes.
“Replanificámos uma temporada inteira em apenas algumas semanas, face ao mais elevado nível de incerteza a que assisti ao longo dos meus 25 anos de carreira”, recorda.
Logo a seguir, as bases da Antártida entraram nos meses de isolamento do inverno, sendo que agora, com os primeiros sinais da primavera, começa um novo grande teste, mesmo com todos os países com bases locais a enviarem, desta vez, equipas mais reduzidas.
Há algumas semanas, na Estação de McMurdo, os trabalhadores fizeram um simulacro para testarem uma realidade com que o resto do mundo já está demasiadamente familiarizado: o uso de máscara e o distanciamento social.
“Vai ser difícil não correr para abraçar os amigos” quando eles chegarem, admite o diretor de estação Erin Heard.
Segundo a AP, Heard e a restante equipa da estação vão começar a usar máscara dois dias antes da chegada dos colegas, de forma a “ganhar memória muscular”. As máscaras de que dispõem foram confecionadas pelos próprios, com tecidos armazenados na estação de McMurdo e feitas com base em modelos que pesquisaram ‘online’.
Quando os colegas chegarem, Heard deixará a Antártida. Em condições normais, estaria nos seus planos próximos desenregelar numa qualquer praia, mas agora terá de se cingir à nova normalidade.
“Será que peço a um amigo que me vá buscar? Não sei se estarei à vontade para o fazer”, diz, quando pensa na sua chegada ao aeroporto. “Vai ser muito esquisito, para ser honesto, chegar vindo daquilo que parece ser outro planeta”.
LUSA/HN
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