Doentes enfrentam sequelas do vírus a nível neurológico, respiratório e na alimentação

20 de Novembro 2020

Rui não sabe quando volta a andar, Fernando tinha medo de subir escadas e António treina a escrita com a mão esquerda para colmatar os danos do lado direito: São casos Covid-19 que “arrumaram” o vírus mas enfrentam sequelas.

Fisioterapia, terapia ocupacional, terapia da fala e neuropsicologia são especialidades do Centro de Reabilitação do Norte (CRN), localizado em Vila Nova de Gaia, no distrito do Porto, que desde maio recebe doentes com sequelas pós infeção Covid-19.

O vírus que está a mudar e a paralisar o mundo, e que é vulgarmente associado a funções respiratórias, também tem implicações musculares, acarreta efeitos neurológicos e pode alterar a voz ou a alimentação de quem o contrai e passa por internamentos prolongados.

“A nossa amostra é uma amostra do doente mais grave, do doente que teve uma passagem pelos cuidados intensivos, que regra geral é um internamento mais prolongado e que deixa sequelas. Depois cada um acaba por ter um perfil diferente de sequelas. Diria que, de forma geral, o descondicionamento ao esforço é uma sequela frequente, a fadiga e muitas vezes a dispneia por alguns esforços, como ficar com falta de ar no exercício, e dificuldade em fazer algumas atividades do dia a dia que eram habituais previamente. Estamos a falar de coisas muito simples como o vestir e despir”, descreve à Lusa a coordenadora da Unidade de Reabilitação Geral de Adultos do CRN, Ana Machado Lima.

Rui Ribeiro, de 53 anos, residente no Porto, é um dos 22 doentes quer o CRN já recebeu desde maio pós-infeção pelo novo coronavírus. Passou por três hospitais – Matosinhos, São João, no Porto, e Valongo – até chegar a Gaia há uma semana.

Esteve quatro meses em coma. É o paciente que “mais tempo esteve ligado a ECMO (Oxigenação por Membrana Extracorporal) no mundo e sobreviveu”, segundo lhe contaram. Quando acordou ainda tinha uma “máquina que substitui o coração e os pulmões” agarrada a uma das pernas e percebeu que não sentia algumas partes do corpo.

“Há quem recupere rapidamente e quem fique com sequelas para toda a vida. Só o tempo o dirá. A esta distância nenhum médico arrisca dizer-me se vou ou não voltar a andar”, conta Rui à Lusa, depois de passar da marquesa para uma cadeira de rodas com a ajuda de um fisioterapeuta e antes de se dirigir ao refeitório onde cada paciente tem uma alimentação especifica.

Ana Machado Lima explica que, a par de situações relacionadas com lesões musculares ou nervosas, existem doentes que “quer pela fraqueza muscular, quer pela entubação ou pelo acamamento prolongado ficam com alterações na deglutição [no engolir] e na fonação [voz]”.

“As situações dependem de doente para doente. Em alguns casos é preciso reeducar a voz. A terapia da fala tem um importante papel”, descreve a coordenadora, acrescentando como sequelas de uma doença do foro respiratório as decorrentes da intubação que podem implicar traqueostomias o que faz com que a alimentação deixe de ser segura pelo risco de que algum alimento se aloje na área respiratória.

Rui Ribeiro já passou por vários passos de uma dieta completamente nova. Passou dos sumos para o iogurte e, entretanto, já come comida sólida. Também já sentiu na pele a dificuldade em levar a colher de sopa à boca sem tremer ou redescobriu o gosto pelo peixe por este ser mais fácil de partir face à carne.

Também António Rodrigues, de 53 anos, assistente operacional numa escola em Braga, está a “reeducar” o corpo. Decidiu treinar a mão esquerda para a escrita, uma vez que perdeu movimentos do lado direito e porque não admite a hipótese de não regressar o mais rápido possível ao trabalho.

“Quero ser útil ao meu país, como o meu país, através dos hospitais, me é útil a mim. Salvaram-me e continuam a tratar de mim”, diz à Lusa, enquanto pedala sentado numa cadeira e conta que esteve em coma induzido “alguns meses porque já não respirava bem”. Descobriu que estava infetado no final de março. Foi intubado a 22 de abril.

“Fiz quatro testes e só o quarto deu negativo. Ganhei uma úlcera e apanhei uma bactéria. Estive até 15 de outubro no Hospital de Braga. É impossível saber onde apanhei [o vírus]. No princípio de agosto não dava um passo. Agora já só não levanto os dedos dos pés e mexo pior o lado direito. Lembro-me de ter sonhos. Lembro-me de ter pesadelos, mas é passado. Tinha de fazer muita força para me levantar e agora já me levanto sozinho. Já não me sinto cansado”, resume à Lusa.

António está internado no CRN, onde Fernando Soares, de 67 anos e residente em Gaia, também já esteve, mas agora frequenta em regime de ambulatório com sessões de fisioterapia três vezes por semana.

Ao longo de cerca de uma hora e meia faz exercícios para fortalecer os músculos e sessões de eletroestimulação. Fernando fala à Lusa em pé por opção: “orgulhoso” das suas “conquistas diárias” depois de ter perdido 18 quilos e de ter passado um mês em cuidados intensivos e outro numa enfermaria no Hospital Santos Silva, em Gaia.

“Quando vim para aqui deslocava-me numa cadeira de rodas, passei para um andarilho e passado algum tempo comecei a andar a pé. Cheguei a pensar ‘como é que eu vou viver numa casa com escadas?’. Na primeira semana foi complicado. Agora subo e desço as vezes que forem precisas”, conta.

Fernando Soares foi o único do seu agregado familiar que teve de ser internado. A mulher, que também teve Covid-19 “só” sentiu cansaço e apresentou sintomas gripais como febre e tosse. O filho “só” passou por dois dias de febre.

As sessões de eletroestimulação que faz no CRN servem para recuperar movimentos porque tem dificuldade em fazer a extensão dos braços. Usando uma linguagem pouco científica, a situação de Fernando é explicável como um “formigueiro” que ocorre quando uma pessoa tem as pernas cruzadas durante muito tempo. No caso deste bancário reformado o que despoletou essa situação foram as semanas de coma induzido que passou para poder estar ligado a um ventilador.

“Não me lembro de nada. Só sei o que me contam”, refere. Mas sabe que teve alucinações e que “imaginou coisas que nunca existiram”.

“As alterações psicoemocionais são frequentes. Este é um evento traumático na vida dos doentes (…) pessoas que acordaram depois de um período de coma com um cenário de equipamentos de proteção individual que os impede de ver a equipa que os trata. Sentem medo. As sequelas pós-traumáticas, as alterações cognitivas – memória, atenção, orientação, velocidade do raciocínio – todas elas são avaliadas cá pela neuropsicologia”, explica Ana Machado Lima.

De acordo com a responsável “já foi possível identificar pelo menos” duas síndromes que não são exclusivos da Covid-19, mas que estão a ser detetados em pacientes que “arrumam” o novo coronavírus, mas partem para outra batalha: a recuperação.

A Síndrome de Guillain-Barré está associada a paralisias e o Síndrome PRES (Encefalopatia Posterior Reversível) associado a casos de cegueira. O CRN já recebeu dois casos de PRES pós-covid-19, um dos pacientes não recuperou a visão”.

A pandemia de Covid-19 já provocou mais de 1,3 milhões de mortos no mundo desde dezembro do ano passado, incluindo 3.632 em Portugal.

LUSA/HN

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