Construção de hospital modular em Ponta Delgada levanta dúvidas de legalidade

9 de Junho 2025

A comissão de inquérito ao incêndio no hospital de Ponta Delgada, nos Açores, concluiu que a construção do hospital modular levanta dúvidas de legalidade e regularidade financeira e que a decisão não foi suportada em estudos técnicos e económico-financeiros.

“Os processos de contratualização subjacente à conceção, construção, apetrechamento e funcionamento do hospital modular, levantam dúvidas quanto à legalidade e regularidade financeira”, lê-se nas conclusões da versão final do relatório da comissão de inquérito, a que a Lusa teve acesso, que ainda terá de ser votada pelos deputados.

O Hospital do Divino Espírito Santo (HDES), em Ponta Delgada, o maior dos Açores, foi afetado por um incêndio no dia 04 de maio de 2024, que obrigou à transferência de doentes para outras unidades de saúde da região e do país.

Na sequência do incêndio, foi decidido instalar um hospital modular junto ao edifício, para assegurar os cuidados de saúde prestados pelo hospital até à sua requalificação.

Em fevereiro de 2025, foi criada uma comissão de inquérito na Assembleia Legislativa dos Açores, proposta pelo PSD, com o propósito de apurar as circunstâncias, causas, responsabilidades e consequências do incêndio, bem como avaliar a resposta institucional subsequente.

No relatório, a comissão parlamentar de inquérito conclui que “não foi possível confirmar o cumprimento integral dos procedimentos legais e administrativos exigidos na adjudicação do hospital modular, dada a inexistência de prova documental adequada e a ausência de declarações específicas por parte dos responsáveis com competência direta na tramitação contratual”.

“Nenhum dos responsáveis da tutela da Saúde, da Administração Pública Regional ou da empresa adjudicatária MBW detalhou, durante as audições, a forma de contratação adotada, a existência de relatórios de fundamentação prévios, a emissão de pareceres jurídicos nem recebeu quaisquer cópias de contratos, despachos de adjudicação ou documentos que comprovem o enquadramento legal do procedimento”, lê-se no relatório.

Ainda antes de conhecidas as conclusões da comissão de inquérito, na quinta-feira, o parlamento açoriano aprovou, por unanimidade, uma proposta do Chega para que fosse feito um pedido de auditoria do Tribunal de Contas aos “contratos e despesas relacionados com a conceção, construção, apetrechamento e funcionamento do hospital modular”.

Segundo as conclusões do relatório, “a iniciativa de contactar a empresa fornecedora (MBW) do hospital modular foi da secretária regional da Saúde e Segurança Social e ocorreu no dia 5 de maio [um dia depois do incêndio], tendo a execução material dessa infraestrutura, ao nível conceção, sido iniciada no dia 6 de maio de 2024”, ainda que “a adjudicação por ajuste direto tendo sido formalizada em 13 de agosto de 2024”.

“A comissão de inquérito teve acesso a uma declaração de garantia emitida pela Secretaria Regional da Saúde e segurança Social, com data de 26 de junho de 2024, que prometia ‘iniciar um procedimento de ajuste direto’, com consulta a apenas uma entidade, nomeadamente a MBW, confirmando que os trabalhos começaram antes da formalização do contrato de adjudicação”, adianta.

O relatório conclui ainda que a opção do executivo açoriano pela estrutura modular “não foi suportada em estudos técnicos e económico-financeiros, nem resultou de uma avaliação comparativa com uma possível reabilitação urgente do edifício principal do hospital”.

“No decurso das diligências da comissão de inquérito verificou-se que não existiram estudos prévios aprofundados, planos estratégicos consolidados ou pareceres técnicos independentes que fundamentassem, de forma estruturada, a decisão de avançar com a construção do hospital modular na sequência do incêndio no HDES. A decisão foi tomada em contexto de emergência, com base na necessidade de resposta rápida à disrupção dos serviços hospitalares essenciais”, lê-se no documento.

As conclusões indicam que “a estrutura modular apresenta limitações ao nível da sua capacidade de internamento, dimensão das urgências e da sala de espera, de deficiências de climatização, de falta de compartimentação e reduzidas zonas de descanso e sanitários”.

Inicialmente orçamentado em 12 milhões de euros e com um prazo de execução de 90 dias, o hospital modular “acabou por representar uma despesa global associada de, aproximadamente, 40 milhões de euros (incluindo os trabalhos preparatórios e a aquisição de equipamentos)” e por ter “uma execução material superior a 180 dias”, lê-se nas conclusões.

Apesar de a estrutura modular ter sido construída “com o pressuposto de ser a única alternativa viável para garantir a continuidade da prestação de cuidados de saúde”, o relatório refere que “foi reconhecido por peritos e técnicos que teria sido possível proceder à recuperação e reabilitação do edifício principal do HDES, até ao final de agosto de 2024, nas condições prévias ao incêndio e em alguns dos aspetos até melhores, nomeadamente ao nível das condições técnicas e operacionais nos blocos operatórios”.

Acrescenta, no entanto, que a direção clínica do hospital “manifestou oposição à retoma integral dos cuidados de saúde no HDES, por considerar não estarem reunidas as condições para que estes ocorressem em total segurança”.

A comissão refere que “a entrada em funcionamento do hospital modular permitiu concentrar no perímetro do HDES um conjunto de valências que estavam dispersas por várias unidades de saúde”, mas acrescenta que “foi concebido como uma solução provisória e complementar, sem que consiga repor a capacidade total do HDES”.

O relatório deverá ser remetido ao Tribunal de Contas e ao Ministério Público para os devidos efeitos legais.

lusa/HN

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