Salvar vidas atrás da linha vermelha em Santa Maria

14 de Fevereiro 2021

“Estamos todos? Um, dois, três.” Foram precisas sete pessoas para virar o doente. O trabalho de equipa na chamada ‘zona vermelha’ é muito exigente, mas médicos e enfermeiros continuam a resistir, apesar do cansaço de um ano de pandemia.

Tal como o vírus que entra no corpo e se vai espalhando, também as unidades de cuidados intensivos (UCI) para doentes covid no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, foram crescendo, tomando o lugar onde antes funcionavam enfermarias, áreas de recobro e blocos cirúrgicos.

A força da pandemia exigiu esforço extra. A hospitais e profissionais de saúde. Em Santa Maria são já oito as UCI para doentes infetados com covid-19. E a 9.ª abrirá este fim de semana, embora vá funcionar no Hospital Pulido Valente.

“O que fizemos foi rever o plano completo. Tínhamos no nosso plano, na área do doente crítico, cerca de 48 camas preparadas para esta fase. Nesta altura já vamos nas 66 e a caminho das 71”, contou à Lusa Daniel Ferro, presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN), que inclui os hospitais de Santa Maria e Pulido Valente.

No total, estavam “preparadas cerca de 120 camas em novembro”. “Nesta altura já ultrapassamos as 300”, acrescentou.

Mas sem pessoal, as camas de nada valem. Daniel Ferro reconhece que foi preciso redistribuir os recursos humanos do hospital, mobilizando-os de outras áreas para a assistência covid, e investir em equipamentos.

Santa Maria ficará com 71 camas de cuidados intensivos, mas na mais recente unidade, inaugurada no início de fevereiro e que ocupou o lugar de uma enfermaria de pneumologia, se fosse preciso ocupar de um dia para o outro as duas únicas camas vagas, tal não era possível por falta de pessoal.

“Neste momento, não temos equipa de enfermagem para abrir essas duas camas. Estão vazias e isso está dependente unicamente de recursos humanos de enfermagem para avançarmos para a abertura dessas camas adicionais que são tão precisas”, confessou Doroteia Silva, médica intensivista da unidade que a Lusa visitou na quinta-feira.

Entrar além da porta com a barra vermelha, é entrar num “mundo” diferente, de “bips”, médicos e enfermeiros que mal se distinguem atrás dos óculos e das máscaras. E de alegria ou vitória quando um doente passa à enfermaria.

O corredor tem quartos à direita e à esquerda. Quatro no total. Todos com doentes em coma induzido e ligados à vida por um emaranhado de fios, que lhes medem os parâmetros clínicos ou asseguram alimentação e medicação, e de tubos que os ajudam a respirar.

Os respiradores usados por médicos e enfermeiros que trabalham nesta zona vermelha exigem que se fale um pouco mais alto, para que todos se oiçam. Mas são os sons das máquinas que se sobrepõem. Sempre a apitar, ora para registar informação clínica do doente, ora para alertar para algum problema.

A unidade tem oito doentes internados. Todos acima dos 65 anos. O mais novo conseguiu sair há dois dias para a enfermaria. “Foi a nossa primeira vitória em 11 dias de existência”, conta uma das enfermeiras, recrutada à neonatologia.

Vieram todos – médicos e enfermeiros – de outros serviços do hospital. Todos com o mesmo objetivo: ajudar a salvar a vida dos doentes que o vírus surpreendeu.

“Somos atualmente duas [médicas] intensivista. Houve também reforços médicos de outras especialidades, nomeadamente uma intensivista pediatra e internos de outras especialidades, como anestesiologia, pediatria e medicina interna, que nos vieram ajudar”, conta Doroteia Silva, lembrando que, no total, são sete médicos.

Viram os doentes para que fiquem de barriga para baixo e respirem melhor, verificam a medicação, mudam os sacos de alimentação, mudam fraldas, entubam (ligam ao ventilador) e desentubam. Não há um momento de descanso dentro daqueles fatos que os transformam, durante horas e horas, numa espécie de astronautas.

E os doentes, quando estão estáveis, também se exercitam. Seja com a fisioterapia feita por enfermeiros e enfermeiras, quando é preciso – “fazemos o que podemos” – seja pelo fisioterapeuta Rui.

“Boa tarde, vamos à fisioterapia?”, pergunta Rui, que, mesmo sabendo que a doente não o ouvia, nunca parou de falar com ela, a pedir ajuda para levantar o braço e a perguntar se tinha dores quando o rodava.

“Às vezes ouvem. Percebemos pela resposta nas máquinas, ou abrem os olhos. Mas hoje esta sedação está muito elevada. Hoje, não me liga nenhuma”. Mesmo assim, a fisioterapia prosseguiu como se a doente o ouvisse e estivesse a colaborar.

Nesta unidade os doentes têm todos acima dos 65 anos, mas noutras UCI há doentes muito mais novos. E muitos não tinham qualquer problema de saúde até serem infetados.

“Nas várias unidades há doentes jovens com poucas comorbilidades. (…) Todas as faixas etárias estão representadas”, assegura Doroteia, que falou à Lusa já depois de ter passado pelo ritual ordenado e rigoroso de despir todo o equipamento, na antecâmara que separa a restante área da “zona vermelha”, onde estão os doentes críticos.

Durante a visita da Lusa, a equipa desentubou uma das doentes que estava ligada ao ventilador, na esperança que ela conseguisse respirar sozinha. “Temos de ir tentando. O ventilador vai fazendo cada vez menos trabalho e, quando o doente está a responder bem, tentamos”, explica uma das enfermeiras.

Desta vez, não tiveram sucesso. A doente teve de ser entubada novamente.

“Aqui, é um dia de cada vez.”

LUSA/HN

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