“A aprovação é o passo primeiro e fundamental, mas totalmente insuficiente. Ou se criam as condições necessárias para que essa lei se aplique ou fica em letra morta”, disse à agência Lusa Javier Velas, o presidente da Associação Federal Direito a Morrer Dignamente (conhecida como DMD Espanha), fundada há 38 anos, com delegações em diversas regiões espanholas.
A associação espanhola avalia “positivamente” a lei em vigor desde junho de 2021, “um passo importantíssimo na legislação espanhola”, embora considere que podia ser “mais corajosa”, contemplando a possibilidade de acesso de menores à morte assistida, “e menos burocrática”, prevendo um processo “demasiado longo e complexo”.
Sobre a aplicação no terreno, este ano e meio revelou algumas dificuldades e diferenças relevantes entre regiões em Espanha, segundo a associação e o Governo espanhol.
Por causa da organização administrativa em Espanha, um país totalmente regionalizado em que as regiões têm grande autonomia, coube aos governos de cada Comunidade Autónoma aplicar a lei, que é muito similar à que foi aprovada em Portugal, pela Assembleia da República, na semana passada.
Boa parte das regiões espanholas “não tinha feito os deveres para a entrada em vigor da lei”, como nomear os membros da Comissão que em cada Comunidade Autónoma avalia e recusa ou rejeita os pedidos de eutanásia ou de suicídio assistido, disse Javier Velasco.
Este atraso, na maioria das regiões, resolveu-se em semanas, mas houve casos em que se adiou “muitíssimo a nomeação das comissões”, como aconteceu na Andaluzia ou em Madrid, segundo relatou o representante.
“De tal maneira que se estavam a fazer eutanásias noutras partes de Espanha” e nestas duas regiões não se podiam sequer solicitar “porque não tinham cumprido a lei”, prosseguiu.
“Depois houve problemas, em geral, em todas as comunidades, por desconhecimento dos profissionais” o que, para Javier Velasco, revelou que as administrações regionais “informaram pouco os profissionais de saúde e praticamente não houve formação”.
Já com a lei em vigor, várias regiões “puseram as pilhas”, com destaque para Catalunha, Navarra, País Basco e Cantábria, que são hoje as Comunidades Autónomas onde, diz a associação, melhor se aplica a lei, onde há mais transparência na divulgação de dados e onde também mais eutanásias ou suicídios assistidos se fizeram neste ano e meio.
“Um conjunto de comunidades avançaram mais lentamente em termos de informação e formação e algumas praticamente nem informaram nem formaram”, como acontece em Madrid e na Andaluzia, segundo Javier Velasco.
Em junho passado, no dia em que passou um ano da entrada em vigor da lei, também a ministra da Saúde de Espanha, Carolina Darías, reconheceu a desigualdade na aplicação no terreno e pediu “a mesma velocidade” para “dar as mesmas garantias e para que todas as pessoas tenham os mesmos direitos, onde quer que vivam”.
“Nós, de maneira muito cautelosa e hipotética, pensamos que por um lado influencia o governo de cada comunidade autónoma”, disse à Lusa o presidente da DMD Espanha, a propósito de ideologias, lembrando que em Madrid e na Andaluzia há governos regionais liderados pelo Partido Popular (PP, direita) com apoios parlamentares da extrema-direita do Vox, dois partidos que contestaram a lei junto do Tribunal Constitucional e, portanto, provavelmente, com “falta de vontade política”.
“Aplicam a lei por imperativo legal, mas com pouca vontade”, afirmou Javier Velasco, antes de sublinhar que, no entanto, é apenas uma perceção, porque em Múrcia há também um governo do PP com apoio do Vox e “não houve tantos problemas”, enquanto na Extremadura, onde governam os socialistas, no início, houve dificuldades, embora se tenham resolvido entretanto.
À possibilidade de questões políticas e ideológicas, Javier Velasco soma uma mais generalizada: “Falta de agilidade e de compromisso por parte das administrações públicas” em Espanha.
“Às vezes aprovam leis e parece que uma vez aprovadas já se conseguiu o objetivo”, afirmou, antes de realçar que “a aprovação é o passo primeiro e fundamental, mas totalmente insuficiente” se não forem criados as condições e os meios de aplicação.
Outra crítica que a associação faz às administrações de saúde após este ano e meio é a falta de transparência, com muita relutância em fornecerem dados.
Javier Velasco acredita que “não é má intenção”, mas “a morte ainda é um tabu e parece de mau gosto falar sobre a morte medicamente assistida”.
Assim, e perante o facto do relatório anual com os contributos de cada região, previsto na lei, ainda não ter sido divulgado, a DMD Espanha considera fundamental tal documento para uma avaliação objetiva, mais fiável e global da aplicação da lei.
“Somos muito cuidadosos quando falamos porque não temos dados objetivos”, explicou Javier Velasco, que deu alguns exemplos daquilo que seria essencial saber: os motivos para alguns casos terem levado vários meses a terem uma resposta, para além de todos os prazos previstos ou perceber se há equidade na aplicação, com situações clínicas iguais a terem a mesma decisão por parte das comissões regionais.
Aquilo que parece não ter sido um obstáculo à aplicação da lei, ao contrário do que anunciavam algumas ordens de médicos, é a objeção de consciência por parte de profissionais de saúde, que “é minoritária e não representa um problema”, segundo o presidente da DMD Espanha.
Já “a objeção de conveniência” tem sido um problema em algumas situações, com médicos dos cuidados primários (centros de saúde) a recusarem pedidos por falta de tempo ou formação.
Neste último caso, em regiões como a Catalunha, Navarra ou País Basco foi criada uma “figura de assessoramento” para médicos, que estuda bem a legislação e faz a ponte com a Comissão regional.
NR/HN/LUSA
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