Na legislatura que agora termina, a maior parte da bancada do PS, BE, PAN, PEV, Iniciativa Liberal e alguns deputados do PSD, incluindo o seu presidente, Rui Rio, votaram a favor dos dois textos do parlamento sobre esta matéria, que tiveram a oposição da maioria dos sociais-democratas, de alguns socialistas, de PCP, CDS-PP e Chega.
As deputadas não inscritas Joacine Katar Moreira (ex-Livre) e Cristina Rodrigues (ex-PAN) também apoiaram as duas versões desta legislação, que foram aprovadas em votação final global com cerca de nove meses de intervalo: a primeira em 29 de janeiro e a segunda em 05 de novembro deste ano.
Nos termos do primeiro decreto, que acabaria vetado por inconstitucionalidade, a “antecipação da morte medicamente assistida” deixava ser punida verificadas as seguintes condições: “Por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.”
O texto final, aprovado com 136 votos a favor, 78 contra e quatro abstenções, resultou de projetos de lei de PS, BE, PAN, PEV e Iniciativa Liberal votados na generalidade em fevereiro de 2020.
Quando surgiram projetos de lei sobre a eutanásia, o Presidente da República defendeu que deveria haver um amplo e longo debate na sociedade portuguesa e recusou transmitir publicamente a sua posição pessoal e antecipar uma decisão – promulgação, veto ou envio para o TC – antes de lhe chegar algum diploma.
Durante este processo legislativo, surgiu a meio de 2020 uma iniciativa da Federação Portuguesa Pela Vida, que recolheu mais de 95 mil assinaturas, para que se realizasse um referendo com a seguinte pergunta: “Concorda que matar outra pessoa a seu pedido ou ajudá-la a suicidar-se deve continuar a ser punível pela lei penal em quaisquer circunstâncias?”
Esta proposta de referendo, à qual CDS-PP, Iniciativa Liberal e Chega declararam publicamente apoio, foi rejeitada pela Assembleia da República em 23 de outubro de 2020, com votos contra de PS, BE, PCP, PEV, PAV, das duas deputadas não inscritas e de alguns deputados sociais-democratas, entre os quais Rui Rio.
A aprovação pelo parlamento do decreto que “regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal” aconteceu já depois da reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa nas eleições presidenciais de 24 de janeiro deste ano.
O decreto chegou ao Palácio de Belém em 18 de fevereiro e no mesmo dia o chefe de Estado enviou-o para o TC para fiscalização preventiva da constitucionalidade, sustentando que recorria a conceitos “altamente indeterminados” para definir, no artigo 2.º, os critérios para a prática legal da eutanásia: “sofrimento intolerável” e “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”.
Num acórdão de 15 de março, o TC deu-lhe razão relativamente à segunda expressão, declarando o respetivo artigo inconstitucional, por “insuficiente densidade normativa”. Na mesma data, perante esta declaração de inconstitucionalidade, o Presidente da República anunciou o veto, como impõe a Constituição.
Marcelo Rebelo de Sousa tinha escrito no seu pedido de fiscalização que não estava em questão “saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme a Constituição”.
Apesar disso, no acórdão que teve como relatora a juíza conselheira Maria José Rangel de Mesquita, aprovado por uma maioria de sete juízes contra cinco, o TC entendeu tomar posição sobre essa questão de fundo.
Segundo o tribunal, a inviolabilidade da vida humana consagrada na Constituição não é um obstáculo inultrapassável para se despenalizar, em determinadas condições, a morte medicamente assistida.
Passados quatro meses desde o veto por inconstitucionalidade, em 22 de julho, os deputados Isabel Moreira, do PS, e José Manuel Pureza, do BE, disseram à agência Lusa que os cinco partidos com projetos sobre a eutanásia tinham acordado, em reunião informal, um “texto base” para ultrapassar a falta de “densidade normativa” apontada pelo Tribunal Constitucional.
No entanto, a nova versão só foi a votos em 05 de novembro, um dia depois de o Presidente da República ter comunicado ao país a dissolução da Assembleia da República e a realização de eleições antecipadas em 30 de janeiro, que tinha preanunciado, devido ao chumbo do Orçamento do Estado para 2022 na generalidade.
A segunda iniciativa legislativa para regular “as condições em que a morte medicamente assistida não é punível” foi aprovada com uma maioria semelhante à anterior, com 138 votos a favor, 84 contra e cinco abstenções.
No início do texto, foi acrescentado um novo artigo n.º 2, com as definições de oito conceitos, incluindo o de “lesão definitiva de gravidade extrema”, tendo sido retirada a referência ao “consenso científico”.
As condições em que a “morte medicamente assistida” passa a poder ser praticada legalmente, sem ser punida – agora estabelecidas no artigo 3.º – mantiveram-se praticamente inalteradas: “Por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.”
Por outro lado, foi introduzido um segundo número no artigo 3.º a elencar os critérios exigidos para “a morte medicamente assistida”, no qual se especifica que esta “ocorre em conformidade com a vontade e a decisão da própria pessoa, que se encontre numa das seguintes situações: a) lesão definitiva de gravidade extrema; b) doença grave ou incurável”, e “pode ocorrer por: a) suicídio medicamente assistido; b) eutanásia.”
Neste elenco de critérios, aparece “doença grave ou incurável”, expressão que não constava do anterior decreto, em vez de “doença incurável e fatal”, mencionada mais acima no mesmo artigo 2.º.
E no artigo 3.º, “doença grave ou incurável” é definida como “doença grave que ameace a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade”.
Após retificações em redação final, em parte revertidas por reclamação do CDS-PP, o decreto seguiu para Belém em 26 de novembro. Na noite de 29 de novembro, o Presidente da República recorreu ao veto político pedindo ao legislador que esclarecesse “prévias aparentes incongruências de texto”, antes de qualquer “juízo jurídico-constitucional formulável”.
Marcelo Rebelo de Sousa realçou que o novo texto utiliza expressões diferentes na definição do tipo de doenças exigidas para a eutanásia e o suicídio medicamente assistido e defendeu que o legislador tem de optar entre a “doença só grave”, a “doença grave e incurável” e a “doença incurável e fatal”.
No caso de a Assembleia da República querer “mesmo optar por renunciar à exigência de a doença ser fatal, e, portanto, ampliar a permissão da morte medicamente assistida”, segundo o chefe de Estado, “suscita-se uma questão mais substancial”.
“Corresponde tal visão mais radical ou drástica ao sentimento dominante na sociedade portuguesa?”, questionou.
Marcelo Rebelo de Sousa, católico assumido, assegurou que não pesa na sua decisão sobre esta matéria “qualquer posição religiosa, ética, moral, filosófica ou política pessoal – que, essa, seria mais crítica”, mas sim o que entende ser “o sentimento valorativo dominante na sociedade portuguesa”.
Com a dissolução do parlamento, decretada oficialmente em 05 de dezembro, o desfecho da legislação sobre a eutanásia fica remetido para a próxima legislatura.
LUSA/HN
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